A elaboração teórica sobre a psicose ordinária edifica-se a partir da clínica nodal apoiando-se em conceitos como forclusão generalizada, furo da estrutura, lógica do não todo, gozo uno, paradigma da não relação, sinthoma como grampeamento R-S-I, enfim termos relativos ao ensino do último Lacan porém com a condição de não eclipsar conceitos importantes da clínica estrutural tão fundamentais para a elucidação do mecanismo etiopatogênico da psicose.
Nesta perspectiva a psicose ordinária é uma psicose estrutural, com semblante fenomenológico de normalidade, deduzida por signos discretos de forclusão.
O psicótico ordinário ilustra bem o mecanismo pelo qual o sujeito coloca o objeto a no lugar do semblante como modo de tratamento de um gozo radical, fora da lei.
O resultado desta operação culmina numa psicose ordinária bem semblantizada, sobretudo no que se refere ao uso particular que o sujeito faz do seu sinthoma para fins de inserção no laço social.
Uma breve retrospectiva permitirá esclarecer estas proposições introdutórias.
Freud e a Defesa Insondável.
Nos primórdios da psicanálise Freud concebia os transtornos mentais como o resultado do conflito psíquico entre a defesa (Abwher) patológica do eu e a exigência de satisfação (Befriedegung) da pulsão.
No artigo “Neuropsicoses de Defesa”(1894) Ele afirma a existência de uma defesa muito mais enérgica e eficaz na psicose do que na neurose: “O eu recusa (verwirft) a idéia incompatível junto com seu afeto e se comporta como se a idéia jamais lhe tivesse ocorrido” (FREUD, 1969, p.71).
A defesa psicótica (verwerfung) mostrava-se como uma forma radical de negação da representação de tal modo que sequer deixava um rastro de memória, um traço simbólico.
Freud retoma, no “Caso Schreber”(1911), o problema da abolição da representação intolerável propondo-a em termos de uma supressão interna e seu retorno exterior sob a forma de alucinação: “Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior; a verdade é que aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora.”(FREUD, 1969, p.95).
Este axioma freudiano, para explicar a etiopatogenía da psicose, foi retraduzido por Lacan com o enunciado: o que foi foracluído no simbólico retorna no real.
No caso do “Homem dos Lobos” (1918) Freud toma a alucinação do dedo cortado como exemplo de repúdio (verwerfung ) à castração, teorizando-o em três tempos lógicos: 1°) fracasso da defesa psicótica em manter afastado da esfera do eu aquilo que fora suprimido, 2°) retorno do conteúdo abolido na forma de “uma coisa alucinada” , espécie de cena tendendo ao irreal, 3°) a reação de perplexidade do paciente, evidenciada em um “terror inexprimível” seguido de mutismo e prostração.
Em “A Denegação” (1925) Ele coloca a função do juízo sobre a castração como critério diferencial entre neurose – há um pai (bejahung) tributário da castração – e psicose que não realiza (verwirft) um juízo de existência sobre a figura do pai castrador, nem opera um juízo atributivo relativamente à castração materna.
Lacan (1957) re-elaborou a tríade freudiana édipo-juízo-castração enquanto metáfora paterna, concluindo: “No terceiro ano de meu seminário, falamos da psicose como fundamentada numa carência significante primordial” (LACAN, 1999, p.14).
Trata-se da verwerfung traduzida em termos de forclusão localizada, incidindo no significante do nome do pai como operador lógico necessário à amarração da estrutura psíquica do sujeito.
A conseqüência clínica deste “dano estrutural ” consiste na impossibilidade do sujeito psicótico asceder a uma significação fálica que lhe possibilitasse situar-se na diferença lógica entre os sexos: se NP0 então Φ0.
Restando-lhe o delírio como recurso simbólico para a reconstrução da realidade que lhe permitirá encontrar um lugar no mundo que “poderá não resultar esplêndido, porém será habitável ” (Freud, 1969, p.94) e o protegerá de cair no abismo de um gôzo mortificante.
Lacan e a Experiência Enigmática da Psicose.
Lacan retoma a verwerfung freudiana para explicar o desencadeamento clássico de uma psicose, caracterizando-o pela operatividade solidária de três operações subjetivas : apelo ao nome do pai que abre um furo no simbólico, retorno de um significante (Um-pai) no real que produz uma irrupção de gôzo, perda de uma identificação egóica estabilizadora com consequente dissolução do suporte imaginário (eixo a —- a’).
Na Conversação de Arcachon, Miller (1998, p.110 ) evoca esta teorização: “um desencadeamento repentino no sentido como Lacan o define na clínica do Nome-do-Pai, articulado à foraclusão do Nome-do-Pai, a um buraco no Outro, e quando o sujeito encontra esse buraco, acontece o desencadeamento.”
A partir do conceito “ponto de capitône” Miller (1998, p.106) propõe a equivalência funcional entre Sinthoma e NP: “uma amarração sistemática pode prender sem apoio do Nome-do-Pai. É valorizar a equivalência entre sinthoma e o Nome-do-Pai ”.
Sendo assim, na psicose desencadeada o conteúdo forcluido retorna na metáfora delirante que possibilita a construção de uma nova realidade que inclui o real.
Neste enfoque a metáfora delirante não passa de uma modalidade de sinthoma na medida em que, conforme ensina o paradigma Schreber, permite conectar os três registros que estruturam a experiência subjetiva do ser falante: tornar-se a Mulher de Deus faz suplência no imaginário à ausência de significação fálica; gerar uma nova raça substitui a função do pai forcluido no simbólico ; fruir determinado estado de beatitude permite um remanejamento na economia de gozo suportável no real do corpo.
Psicose Ordinária e Desligamentos do Outro
Geralmente uma psicose costuma tomar dois cursos diferenciados: irrupção súbita, com ou sem sinais prodômicos, e evolução gradual e/ou insidiosa culminando no cortejo de sintomas típicos de uma psicose declarada.
Nestes casos há dissolução da articulação RSI, caracterizada por sintomas clínicos relativos a cada um dos registros: desmembramento corporal, advento de duplos especulares, no imaginário; fuga do sentido, dificuldades de subjetivação das operações de linguagem, no simbólico; vivências hipocondríacas, alucinações verbais, no real.
O desencadeamento clássico de uma psicose implica a apresentação clínica de condições subjetivas descritas anteriormente (furo no simbólico, significante no real, perda de identificação) que não se verificam nos casos de psicose ordinária. Tampouco é comum o recurso à metáfora delirante. Por conseguinte não é sustentável falar de desencadeamento na psicose ordinária.
Melhor utilizar o conceito de desligamento (debranchement) do Outro como aponta Laurent (1998, p.124): “desligamentos sucessivos do Outro indo até o fundo para reabsorção, um silêncio ao mesmo tempo entremeado de gozo – pulsão de morte, silêncios sucessivos – nos dá o avesso da clínica do desencadeamento, da ruptura estrita.”
Quanto à solução pela via do Sinthoma dependerá diretamente do modo de retorno do elemento forcluido.
Numa configuração na qual o significante de alíngua fala no sujeito através do Outro da linguagem, o recurso à nomeação poderá funcionar bem como localização sinthomática de gozo. Assim o sujeito estabelece um ponto de basta ao Outro gozador por meio do manejo do laço social.
Neste sentido Laurent (2016, p.146) esclarece que a função de nomeação é homóloga à estrutura do fenômeno elementar: “O nome próprio é uma metáfora delirante exitosa porque ele tem, na língua, propriedades extraordinárias: já não se traduz. Ele fixa, une de tal modo que a tradução pode deter-se”.
Por outro lado o encontro com o significante de alíngua pode materializar-se na irrupção de um gozo no corpo com conseqüente desconstrução da identidade corporal. Aqui poderá ser muito mais útil para o sujeito encontrar uma função para um órgão ou um modo de religamento com o corpo próprio do que o recurso ao delírio.
A Função do Analista Parceiro-Sinthoma
Antecipando possíveis desdobramentos de uma clínica da psicose ordinária, Hervé Castanet (2003, p.43) convida-nos a “privilegiar a localização clínica da relação com o real e com o gôzo (…) a função para o sujeito de cada um dos tres registros (R, S e I) e a parte que corresponde a cada um no enodamento sintomático” .
Nesta abordagem o analista ocupa, na transferência, a posição de parceiro-sinthoma com o objetivo de possibilitar o advento de uma lógica que dê sustentação a uma pequena invenção, um discreto delírio, um ato de nomeação, enfim qualquer resposta criativa que permita ao sujeito determinada localização de gozo no sinthoma, conforme a fórmula S1 – a.
Esta estratégia visa não deixar o sujeito psicótico extraviar-se no movimento delirante, concebido como uma tentativa espontânea de fazer consistir significante e gozo pelo viés da produção do sentido, cuja conseqüência é o empuxo ao sentido-gozado.
O analista trabalha no sentido de promover a conexão direta entre o significante e o objeto a (pedaço de real). Evitando assim a concatenação significante, que não cessa de se retraduzir, para que possa advir um novo modo de relação entre o significante e o gozo, possibilitando a amarração da estrutura psíquica do sujeito.
O analista deve orientar o tratamento para uma dessubstancialização do Outro, para reduzí-lo à condição de semblante, que permita ao sujeito servir-se Dele a partir de sua construção sinthomática particular.
O analista parceiro-sinthoma assume a função de secretariar ao sujeito psicótico na criação de suas invenções, singelas ou engenhosas, e na verificação das respectivas eficácias enquanto grampeamento Real-Simbólico-Imaginário.
O tratamento da psicose ordinária realiza-se numa clínica das soluções pragmáticas e inéditas que brotam no sujeito como respostas às falhas nas amarrações R-S-I.
Em relação aos S1(s) soltos de alíngua, o analista não os interpreta, não favorece a produção de sentido, intervém na direção de uma localização sinthomática que possibilite ao sujeito um Saber- Fazer aí com seus efeitos de gozo.
Por conseguinte ele dirige o tratamento rumo aos modos de detenção que se fazem por múltiplos artifícios, verificados caso a caso: discursivos, performáticos, inventivos, poéticos, semblantizações e afins.
Para uma psicose com signos discretos, um analista com intervenções mínimas que apontem para o religamento do corpo, da linguagem e do gôzo em um sinthoma que funcione como ponto de basta de alíngua.