A vida íntima
“Tudo isso se deve ao que se passou no início da vida e em função das primeiras impressões recebidas pelo sujeito.”[2]
Em psicanálise, a vida íntima é, talvez, um tempo do sujeito, de um lado, quando da condução de seu tratamento, de outro, ao efetuar o passe, quando da transmissão aos passadores, em que ressurge o sentido etimológico de intimar, quer dizer, fazer conhecer, fazer saber.
Antes disso, é difícil negligenciar que o íntimo, em seu valor singular, pode virar supereu e intimar ao sujeito a ordem de gozar.
Relatarei a posição de um sujeito cujo fantasma – se fazer trair – dá certa conduta de vida, ao ponto de se intimar uma impossível colaboração com o Outro que figura como traidor. Sua solução neurótica será a de se calar para não trair, o que revela o gozo contido nessa posição e implica uma traição quanto ao desconhecimento de seu desejo.
O íntimo dessa regra de conduta de vida radical é a posição de infernal vigilância a nunca ceder sobre seu íntimo e a não-traição.
O íntimo, me parece, empurra à segregação, à ocasião da pequena diferença, aí onde o êxtimo leva a aposta da dessegregação do particular de cada um, sem por essa razão bloquear o sujeito, quer dizer, a identidade de si a si, pois o êxtimo empurra o sujeito. Ele o empurra tanto que o sujeito passa seu tempo a querer preencher essa hiância com o significante (S1), com o objeto (a), com o objeto de amor, com o eu, com o supereu.
A intimidade do sujeito do inconsciente não pode evitar a dimensão êxtima do inconsciente que pode produzir também nesse paradoxo um saber novo, extraído do tratamento, via uma subjetivação necessária e não sem temporalidade – é preciso “tempo para se fazer ser”, nos ensinava Jacques Lacan. A extimidade, não sem a temporalidade do sujeito, pode levar à consideração desse saber novo saído de uma parte, da encarnação do objeto pelo analista, e de outra parte, do furo que permite a produção desse saber novo. Há, então, de um lado, a encarnação do objeto e, de outro, o ponto radicalmente vazio que permite uma invenção de saber. É poder reconhecer ser o objeto de gozo, ser esse objeto êxtimo ao sujeito – “O êxtimo diz que o mais íntimo está no exterior, que ele é do tipo, do modelo: corpo estrangeiro”[3] – e, de outra parte, reconhecer esse ponto vazio de gozo que permite abordar o saber a partir de um furo no saber.
Íntimo e êxtimo do sintoma
Eu anteciparia que há uma face íntima do sintoma que muta em sua face êxtima. Via seu íntimo, o sujeito tenta convencer o Outro que sua queixa é autêntica e que deve ser mantida intocada.
A dimensão êxtima se inscreve logo que o sujeito pode restringir sua queixa a um sintoma, sintoma analítico, que se reduzirá a um ponto que será esse que resiste ao significante e que acabará por se esvaziar para aparecer como um saber novo, saber que estará sempre a se renovar, para cada um, mas também para a psicanálise. É isso o que explica a tarefa árdua.
O êxtimo, ou do sintoma ao saber
Apresentarei a condução de um tratamento que vai da passagem do gozo do Real enquanto sintoma, ao Real do gozo enquanto demonstração, enquanto saber.
Ela não falava, pois toda palavra equivalia para ela a uma traição, a uma mentira ofertada ao Outro. Paradoxalmente, dizer era também trair o Outro. Esse Outro, seguindo uma cena enigmática, torna-se o traidor, aquele que, segundo ela, maltrata a palavra. Isso se aplica também ao Outro materno cuja frase recorrente é: “Por que levar em conta essa palavra?”.
Ela torna-se desconfiada, vigilante e silenciosa. Ela não tratará mais com o Outro. Seu intratável instala-se. Ela se construirá como o objeto sem traição, aquele que falta ao Outro.
O amor da verdade convoca aqui as significações da morte. Ela fará uma longa análise, pois ela experimenta a famosa fórmula de Lacan, “é preciso tempo para se fazer ser”.
Ela retomará pouco a pouco a palavra, via psicanálise, de uma parte no seu tratamento, de outra parte na comunicação de trabalhos diversos no seio da comunidade analítica.
A desconfiança perdura até o momento do retorno de uma cena onde ela reencontra o grito esquecido quarenta e cinco anos antes. O fantasma revela-se, revelação correlata ao sentido do sintoma. A fantasia já começada de “olhar a morte na cara” e sintomaticamente de esperá-la a cada noite, cai.
O equívoco funciona. O corte opera. Trair torna-se o equívoco de livrar, de transmitir. ‘A intratável’ tornou-se o sintoma, sinthoma a serviço da prática analítica, ou a maneira própria do sujeito de fazer com o real. O gozo foi dito e traído.
Esthela Solano lembrava-nos que “o passe foi concebido por Lacan como a prova, dedutível pelo cartel a partir de uma demonstração feita pelo passante, da passagem de analisante a analista. Essa passagem comporta uma mutação do sujeito, uma mudança que provém de uma relação diferente em relação ao saber e, por via da consequência, essa nova relação ao saber tem uma incidência sobre as condições de seu gozo”.[4]
O Simbólico, o impacto do simbólico sobre o real é verificado. A possível criação da palavra está demonstrada.
O sujeito responde colocando o desejo aí onde o Outro paterno lutava via o jogo para interrogar seu destino. Via tiquê – segundo uma interpretação de Éric Laurent –, ele interrogou toda sua vida o automaton. Trata-se para ele de saber se o Outro absoluto, se Deus o ama como um idiota ou como um herói.
O sujeito sairá do automaton dessa repetição e fará a escolha decidida de uma prática de pura perda, sem enganar. O sistema de saber é reenviado, a partir do gozo do silenciar ou do trair, a um modo de tratamento da inexistência do Outro.
O saber está operando no sentido onde ele dá conta do ponto do indescritível, seja um gozo sem traição, modo de gozo fundamental do sujeito, seja um sujeito sempre feliz.
O sujeito tinha encontrado, na cena enigmática, sua exclusão, a recuperação de um objeto respondendo à falta no Outro, que vem marcar o lugar e os lugares que vêm inscrever a exclusão interna do sujeito que responde à falta no Outro, ao Outro barrado. O fantasma vem recobrir isso que é apreendido, ou o Significante do Outro barrado. A recuperação se faz pelo fantasma – “olhar a morte na cara ou se fazer trair”. O sujeito torna-se esse olhar.
Dois tempos são marcados:
- O tempo de abertura dialética: Os significantes desfilam.
- O tempo da construção do fantasma, em que o sujeito articula seu fantasma, em que ele se religa ao “objeto sem traição”, ao objeto de gozo.
O analista intervém a partir desse lugar, a partir da tentativa de recuperação do objeto perdido. O analista se vê tornando-se o que faz mancha no quadro; sem se tornar o parceiro do sujeito, ele ocupa um lugar êxtimo. Ele opera como lugar do Outro e a partir do lugar de objeto. O analista reabre a relação ao Outro a partir do objeto, a partir da recuperação de um modo de gozo. A partir desse modo de gozo, o analista reabre o caminho em direção ao Outro. Essa orientação analítica desarranja o gozo, abre uma dialética a partir da montagem fantasmática; é a partir do lugar do objeto que o analista já tem um poder na construção fantasmática. O sujeito renunciará a encontrar o Outro fiel, o Outro leal, para servir uma causa que, a causar só pode trair a linguagem. O sujeito escolhe o equívoco, faz a escolha de dizer as coisas de tal maneira que esse dizer pode designar a zona do desejo, ou a ética do desejo.
É assim que o sujeito pode saber, conhecer a determinação que o constitui. No passe, o sujeito é confrontado a um ponto que não obedece ao standard: é o real em jogo. É uma aposta sobre o mais-além do inconsciente que nos leva mais-além da lógica do Um e do Todo própria ao Édipo, quer dizer, uma lógica que acolhe uma zona onde o gozo é “não-todo”, correlato à semântica imposta pela função da castração no inconsciente. É também a invenção da orientação lacaniana e aquela do passe, seja uma aposta sobre a invenção ou uma luta contra o standard, contra a regra que queria uma norma. O passe é conseguir entoar um ponto de onde emerge no encontro faltoso o efeito de novidade, o fracasso da boa maneira – segundo uma expressão de Éric Laurent –, fracasso que demanda efetivamente a realização de um ensino. Não há gozo tranquilo. Há uma maneira tranquila de relatá-lo.
O psicanalista e a Escola
Após o longo desenrolar da cadeia significante, o psicanalista encarna isso que resiste ao simbólico. Ele presentifica o Real em jogo. Sua presença está ligada ao silêncio da pulsão, ao objeto sem traição. Quando da queda do sujeito suposto saber, o objeto real aparece, o objeto como êxtimo ao significante se isola. O psicanalista dirige o tratamento, em todo caso isso foi verdadeiro para mim, não sem o dispositivo da Escola. A Escola teve inegavelmente uma função de êxtimo. Aquilo valia a pena de se inscrever na série daqueles que desejavam a continuação da psicanálise. A Escola me apareceu longo tempo como o êxtimo a serviço da psicanálise, que objetava ao automaton da organização. Acredito verdadeiramente que abordei o dispositivo do tratamento não separado do dispositivo da Escola. Ela faz parte integrante da experiência analítica. Ela presentifica a psicanálise e permite a elaboração de saber que inclui o real.
A Escola é o lugar onde se coloca a questão da psicanálise. O horizonte foi o passe que permitia a Escola com seu procedimento. É o lugar que autoriza o passe e seu procedimento, que abre espaço a uma comunidade de trabalho que dá sua magnitude ao dispositivo do passe e consequentemente sobre a intensão da psicanálise. Creio que a Escola, e a criação da Escola Una[5], vai nesse sentido, tem uma função de êxtimo, mas também com essa função paradoxal, há um êxtimo da Escola que é o Analista da Escola. Ele mantém um vacúolo – segundo a expressão de Jacques-Alain Miller[6] – no seio da Escola. É uma condição estrutural para o futuro, para o futuro da psicanálise no mundo. O êxtimo tem uma função de relançar o desejo articulado ao saber. Esta função de êxtimo permite, de um lado, a perenidade da psicanálise, e de outro, sua dimensão viva de invenção, pois ela concerne um saber que falta e que está sempre a inventar. O saber analítico é uma posição êxtima aos saberes que gostariam de responder do todo e se desembaraçar do que insiste, do que faz objeção a seu próprio sistema. O saber analítico sabe que não se pode dizer tudo sobre tudo, e faz a aposta de produzir um “discurso que não fosse do semblante”[7], um saber que sabe que há um ponto – nomeado gozo – que nenhum dogma, nenhuma regra, nenhuma norma pode absorver. O saber psicanalítico, êxtimo aos saberes, é um saber que não permite o esquecimento, e que se presta às consequências – uma das quais é manter a psicanálise no mundo.