Inicio com a lembrança de uma brincadeira que se chamava telefone sem fio, expressão que não produz atualmente o mesmo efeito, uma vez que quase não existem mais fios nos telefones. Tratava-se de passar adiante uma mensagem recebida, com os efeitos de chiste das distorções que se produziam no percurso. Como num telefone sem fio, trago as reverberações do Seminário de Formação Permanente, realizado no dia 23 de maio do corrente ano. Nessa noite, foram apresentados os cinco primeiros capítulos do curso de Jacques-Alain Miller, Extimidade, por Nora Gonçalves; e o texto Transformações da intimidade, de Pablo Russo, por Ethel Poll, numa mesa coordenada por Marcela Antelo.
O curso de Miller é uma elaboração conceitual para o neologismo extimidade, citado apenas duas vezes por Lacan ao longo do seu ensino, questionando se podemos toma-lo como conceito, noção, estrutura ou operação. Da lista extensa e rigorosa de citações em torno da origem deste termo, que vai de Zygmunt Bauman a Serge Tisseron, é com Freud, com o conceito de Das Ding, coisa perdida, como algo paradoxalmente próximo e exterior, que podemos compreender a extimidade como um Outro estranho dentro de mim mesmo. Nessa suposição do Outro como o mais íntimo e, ao mesmo tempo, exterior, elucida-se que esse íntimo não vem do interior, mas do Um tomado como raiz do ódio próprio que retorna do exterior como estranho, nas formas diversas de xenofobia, sendo o racismo uma delas.
Nora destaca que a psicanálise, em meio à exposição contemporânea, permanece como espaço da intimidade. Embora o analista não seja íntimo, ele é aquele que intima a nada omitir, nada sistematizar, na obrigação para com a regra fundamental. O sujeito aí não é mais do que aquilo que cede ao Outro, que encarna para ele o objeto a, perdido, êxtimo. Objeto central nos paradoxos do amor e do desejo, objeto nada que, no ir e vir da banda de Moebius, e no reviramento topológico do toro, circundam o furo. Nora informa sobre pressentimentos matemáticos, tomados por Lacan como intuições, que ele se serve para tratar das sutilezas de um ato falho que trazem à tona o mais íntimo. No curso de uma análise, a demanda pelo faltante fundamental a dirige-se ao analista pela via da transferência, de onde lhe retorna a interpretação como corte que incide sobre o gozo. Ao final, o analista desvanece como objeto, restando um saber-fazer com um resíduo profundamente íntimo e estranho, irredutível ao campo da representação, uma invenção.
Em seu comentário ao texto de Pablo Russo – que passou pelas referências a Gérard Wajcmam, Miquel Bassols, Freud, Lacan e Miller, para colocar a questão sobre o fim da cultura da intimidade, sendo instalado o império do narcisismo e da inconsistência do Outro – Ethel Poll questiona sobre a ameaça atual à intimidade. Ela menciona um empuxo ao gozo, que se contrapõe à busca de um lugar onde possa escapar do olhar do Outro, evidenciado nos isolamentos que convivem com a hiperexposição. A psicanálise figura como reduto do segredo, em contraposição à época da hipertransparência, que Bassols discute a partir do filósofo Byung-Chul Han. Ethel traz ainda dois episódios do seriado Black Mirror, em que ao nos mirarmos ao desligar as telas retinas, resta o que não cessa de não se escrever. Irredutível, inassimilável, sem que nenhuma exposição consiga esgotar, permanecendo alhures, onde não sabe de si. Numa relação êxtima com a política, o sujeito goza da transparência ignorando a opacidade que o habita e que isso lhe retorna na violência que parece lhe assombrar desde fora como estranho.
Por fim, Marcela Antelo sugere duas referências audiovisuais: um filme alemão de 1913 – O estudante de Praga, dirigido por Paul Wegener e Stellan Rye; e a série de televisão estadunidense Mr. Robot, criada por Sam Esmail, em 2015, na qual um hacker parece ser o herói da época ao se tornar invisível enquanto expõe o maior número de pessoas e a angústia o acossa em seu isolamento social.
Seminário é também sementeira, viveiro, e é com esse efeito de vivificar o desejo que as leituras compartilhadas nos afetam rumo à 23a Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – Bahia, com o tema (O)caso da intimidade – inquietante opacidade do ser, em 28 e 29 de setembro, em Salvador, Bahia.