Gerard Wajcman, em seu trabalho “As fronteiras do íntimo”, apresenta uma interessante visão sobre uma suposta ameaça à intimidade à qual estaríamos submetidos na contemporaneidade e suas consequências à prática psicanalítica. Ele nos relembra que o conceito de intimidade data do Renascimento e que consiste na possibilidade de o sujeito poder ocultar-se do olhar do Outro. Trata-se aí do sujeito cartesiano, que pode esconder-se do olhar de Deus que até então era onisciente e onipresente, para pensar sobre o mundo à sua volta, bem como sobre si mesmo. O sujeito só pode pensar, na sua intimidade, ou seja, quando não é olhado pelo Outro.
Apesar da ideia do sujeito cartesiano ainda vigorar na contemporaneidade, o mundo mudou muito desde o Renascimento, sobretudo no século XXI. Vivemos atualmente um momento no qual a intimidade parece perder importância. Somos constantemente olhados por câmeras que nos perseguem pelos mais variados lugares ou estamos olhando a vida de alguém que expõe cenas de sua intimidade nas redes sociais. Essas cenas consistem em revelar desde a roupa que se está usando em determinado dia até momentos extremamente íntimos, como o ato sexual, por exemplo. A ciência entra nesse jogo convidando-nos a ver além das fronteiras que separam o dentro-fora do corpo biológico, através dos sofisticados exames de imagem que prometem investigar as causas biológicas de todos os problemas da civilização, inclusive do mal-estar inerente ao falasser. Nesse sentido, como pensaríamos atualmente a questão da intimidade, em tempos nos quais tudo parece poder ser visto? Teria o sujeito perdido a possibilidade de se esconder do olhar do Outro, ou melhor, seria o fim da intimidade?
Essas são algumas das questões colocadas por Wajcman, que as responde a partir de uma interlocução com trabalhos de artistas contemporâneos. Dentre eles, destaca-se uma das obras de Wim Delvoy, que retrata, através de imagens de raios-X, cenas de casais na sua intimidade, seja beijando-se ou durante o ato sexual. O artista nos convoca a refletir que, apesar de podermos olhar através das fronteiras corporais, enxergando o que seria mais íntimo, ou seja, o interior do corpo humano, as imagens nada nos dizem sobre esse casal, sobre aquilo que os une ou os separa. Há, portanto, um aspecto íntimo de cada sujeito que sempre parece escapar ao olhar do Outro. É aí que nos aproximamos da psicanálise.
Apesar de o mundo atual nos fazer acreditar que tudo pode ser visto ou dito, há algo que escapa ao olhar e à palavra, o que Lacan chamou de impossível da relação sexual. Não há simetria na parceria sexuada entre dois sujeitos, ao contrário do que ocorre com os animais que sabem exatamente o que fazer, simplesmente reproduzir. A parceria amorosa, portanto, será sempre permeada por conflitos, já que não há uma resposta pronta sobre como os parceiros devem lidar um com o outro.
A arte novamente nos mostra isso. Romeu e Julieta, por exemplo, tragédia shakespeariana escrita entre 1591 e 1595, trata da mesma temática abordada no filme vencedor do Oscar em 2018, A forma da água. Caem os semblantes: a Julieta contemporânea, ao contrário da bela e nobre conhecida shakespeariana, é faxineira e muda, e o Romeu contemporâneo é um monstro aquático que nada nos lembra o charmoso Romeu de outrora. Mas todos eles padecem do mesmo sofrimento, não conseguem fugir dos mal-entendidos da parceria amorosa que apontam para o impossível da sexualidade.
Portanto, por mais que o mundo contemporâneo nos assegure da possibilidade de tudo se ver, haverá sempre aquilo que se esconde e que diz respeito à resposta de cada sujeito à inexistência da relação sexual. É o mais íntimo e ao mesmo tempo êxtimo para cada um que nos acompanha desde sempre e que nos acompanhará para sempre.