Desejo, tédio, vigília, pânico, reclusão, oração e rebelião. São experiências que testemunham essa dimensão essencial que Lacan nos fala sob o nome de Outra coisa. Interessa-me insistir nessas dimensões da Outra coisa, enfatizando sua validade, pois me parece fundamental ler as apresentações clínicas atuais. Ou seja, as apresentações em uma época marcada pelo declínio da ordem simbólica. Talvez para aprofundar essa orientação, poderia tomar a série vigília, pânico, reclusão. Desta vez, vou me concentrar na reclusão. No Seminário As formações do inconsciente, Lacan diz:
E há também a reclusão. Não é essa, enfim, uma dimensão essencial? A partir do momento em que um homem chega a algum lugar, à floresta virgem ou ao deserto, ele começa a se fechar. (…) Trata-se de um instalar-se no interior, mas não é simplesmente uma ideia de interior e de exterior, é a ideia do Outro, daquilo que é Outro como tal, do que não é o lugar onde se está bem enfurnado. (…) Digo mais: se vocês explorassem a fenomenologia, digamos, da reclusão, perceberiam a que ponto é absurdo limitar a função do medo à relação com um perigo real. (LACAN, 1999, p. 182-183)
Interessa-me trazer uma manifestação exacerbada do enclausuramento contemporâneo.
Hikikomori é uma palavra japonesa que significa “estar confinado, isolado”. O termo é usado para se referir aos jovens que optam por abandonar todo tipo de vida social e desenvolvem comportamentos de isolamento extremo. Estima-se em mais de um milhão de casos em todo o Japão. É a partir do encontro com diferentes frustrações (amorosas, acadêmicas, laborais ou sociais) que esses jovens se trancam em seus quartos por anos sem qualquer outra interação com o mundo exterior que não seja através dos jogos eletrônicos ou computadores. Embora num primeiro momento tenha se pensado que esse fenômeno afetasse exclusivamente a juventude japonesa, nos últimos anos têm sido descritos casos com aquelas características em diferentes países ocidentais.
Pensamos o chamado Hikikomori como um fenômeno transestrutural, já que não podemos atribuí-lo a nenhuma das estruturas psicanalíticas clássicas (neurose, psicose, perversão). E podemos situá-lo como um dos efeitos produzidos pelo avanço do discurso capitalista contemporâneo na cultura.
Em “Psicopolítica”, Byung-Chul Han (2014, p. 127) nos indica que os sujeitos já não contam com a regulação que o “Dever fazer” impunha, mas que nos encontramos à mercê de um imperativo mais radical que proclama o “Poder fazer” que, ao contrário da proibição do dever, não tem limites. O slogan “Nada é impossível” encobre um mandado que nega a castração, que empurra o sujeito a um gozo irrestrito e à contínua otimização de si mesmo, a fim de aumentar a eficiência e o rendimento. “Deves poder”.
“O sujeito do rendimento que se pretende livre é em realidade um escravo. É um escravo absoluto na medida em que, sem amo algum, ele se explora a si mesmo” (HAN, 2014).
A otimização pessoal se mostra no regime neoliberal, como a autoexploração total sob o slogan de uma suposta liberdade. A motivação e o autossuperação têm se mostrado mais eficazes que a coerção exercida pelo castigo e o mandado. O sujeito desta época explora a si mesmo sob o imperativo paradoxal de “Seja livre”.
No entanto, essa paixão pela solidão não constitui em si mesma uma resposta nova. Numerosos exemplos mostram isso. Os cínicos, no século V a.C., exaltavam a solidão como o único caminho possível para alcançar a sabedoria e o acesso ao verdadeiro bem. Os anacoretas, eremitas e ascetas, presentes em todas as épocas e na maioria dos sistemas religiosos, escolheram viver em completa solidão, afastados de todo laço social comocondição para poder estabelecer uma relação com Deus que seconsiderava mais perfeita.
Então, onde está a diferença entre as antigas e as contemporâneas Solidões?
Solidões
Antes de elucidar esta questão, devemos especificar a que nos referimos quando falamos de Solidão. Miquel Bassols a define como um afeto, algo que se sente, e geralmente vinculado com a angústia. É impossível pensar a experiência da solidão fora da experiência da angústia causada por uma falta, que não é outra que a falta do Outro da linguagem. Quer dizer, do Outro simbólico que oscila sempre entre presença e ausência.
“Há então uma primeira solidão que é generalizável para todo sujeito da palavra. É a solidão do ser no mundo (…) que podemos definir como a solidão da falta a ser” (BASSOLS, 1994, p. 23).
Solidão que pode equiparar-se ao que Freud enuncia no Projeto para uma psicologia científica e conceitua em “Inibição, sintoma e angústia” (FREUD, 1993a) como desamparo fundamental. A situação inicial do sujeito é o desamparo diante da irrupção do quantum pulsional, e é o Outro dos primeiros cuidados aquele que pode tramitar essas quantidades mediante uma ação específica. É nesse primeiro laço com o Outro que o sujeito se constitui. É dizer que essa solidão estrutural, longe de se opor ao laço com o Outro, constitui a sua condição de possibilidade e de seus possíveis enredos, já que é um laço que nunca poderá ser relação.
É preciso distinguir essa solidão radical, inerente ao sujeito da palavra do sentimento de solidão, ou da solidão em suas “manifestações patéticas” como as nomeia Jorge Alemán. O sujeito responde com o sentimento de solidão a cada vez que vacila a ficção mediante a qual o Outro lhe oferece seu complemento de ser.
“São essas figuras patéticas da solidão as que alcançam seu zênite social quando se tornam colonizadas pelos distintos dispositivos do individualismo capitalista” (ALEMÁN, 2012).
De Anacoretas a Hikikomoris
Em “Introdução ao narcisismo” (1993b), Freud responde a uma objeção de Jung, que tentava negar o caráter sexual da libido, dando como prova disso os ascetas e os anacoretas. Freud sustenta que nesses casos não é possível falar de uma ausência de investimentos libidinais, mas que estes são sublimados e dirigidos a Deus.
“Um anacoreta assim, que se esforça em apagar todo rastro de interesse sexual (…) nem sequer tem que apresentar uma colocação patógena da libido. Poderia ter perdido todo interesse sexual pelos seres humanos, sublimando-o, no entanto, em um interesse reforçado pelo divino”.
É dizer que a libido que o anacoreta retira do laço social investe esses Outros privilegiados. Seu isolamento oculta um encontro que se dá a sós entre o sujeito e o Outro em suas diferentes figuras. Deus, sabedoria ou bem supremo não são outra coisa que substitutos do ideal.
Talvez aqui possamos apontar uma via que nos permita delimitar o que diferencia a solidão do Anacoreta da do Hikikomori. Como sustenta Jaques-Alain Miller, a atualidade se caracteriza pela inexistência do Outro, quer dizer, pelo declínio da função paterna e da lei que este impunha e pela ascensão ao zênite social do objeto a. (MILLER, 2005)
Não podemos subestimar que o isolamento do Hikikomori se dá nesse momento que chamamos de puberdade. Momento de encontro com a intensidade da pulsão e no qual se deve consagrar a substituição da infância pela idade adulta. O Hikikomori constitui o fracasso dessa substituição. Nesta via, pode se destacar que em “Inibição, sintoma e angústia” (1993a) Freud define um mecanismo de defesa particular, subsidiário do recalque e próprio da neurose obsessiva. Este é o isolamento (Isolieren) e tem a finalidade de garantir a suspensão dos laços associativos com aquelas representações desagradáveis de vivências realizadas no “sentido da neurose”. Ele também se apoia nesse mecanismo de defesa para explicar o “tabu do contato”. O isolamento aparece aqui uma vez que o “contato físico é a meta imediata, tanto do investimento terno no objeto quanto o agressivo” (FREUD, 1993a, p. 116). Quer dizer que esse mecanismo não atua somente no nível dos significantes, mas também no da pulsão. É um mecanismo de defesa ante a irrupção pulsional. Isto é, poderíamos dizer que Hikikomori e Isolieren obedecem à mesma tendência.
Diante do disruptivo do encontro com a metamorfose do corpo que a puberdade implica, a época já não nos oferece esses ideais sólidos e bem consolidados que antigamente captavam a libido do anacoreta. Em seu lugar, desdobra-se diante de nós um catálogo interminável de objetos tecnológicos.
Não havendo um Outro que compareça ao encontro com o sujeito, este faz parceria com estes distintos objetos do progresso das tecnociências que possibilitam uma modalidade de gozo que pode prescindir do Outro, mais precisamente do corpo do Outro. O Hikikomori garante assim um encontro com um parceiro sem corpo. (AMADEO DE FREDA, 2015)
O isolamento do Hikikomori oculta o encontro com esse parceiro sem corpo que é o objeto a em sua função de mais-de-gozar; e é precisamente a relevância que toma esse gozo, o que obtura a possibilidade de todo laço social.
Podemos dizer, seguindo Morel, que tanto a solidão do Anacoreta quanto a do Hikikomori, sem deixar de ser autênticas, são falsas solidões. (MOREL, 1994) Em ambas, a máscara do isolamento oculta um encontro. Seja com o ideal ou com o gadget, o sujeito encontra seu parceiro em todas as épocas.