Como elucida Wajcman1, a intimidade se refere ao lugar onde o sujeito pode estar, escapando à suposição de ser olhado. O autor realiza, assim, uma analogia entre o íntimo e a possibilidade de se esconder. Nessa direção, aquilo que nos é secreto e impossível de dizer guarda a opacidade do gozo que se insubordina ao saber e, ao mesmo tempo, não encontra uma imagem que lhe permita velar.
Contrário à opacidade do real do gozo, o empuxo contemporâneo do olho absoluto2 nos remete ao questionamento sobre o que é mesmo exposto da grande rede virtual. Instagram, Facebook, Lives, tudo em tempo real, nos convoca tanto à posição de tudo ver, quanto à exigência, para fins de credibilidade, de tudo mostrar.
Consumidores consumidos3 pelo mercado das imagens íntimas, convidamos para esta edição o ator e apresentador Ciro Sales para debater os efeitos contemporâneos dessa nova lógica social. À frente do CatFish Brasil, reality show exibido pela MTV, cujo objetivo é lançar luz sobre aspectos sombrios das relações virtuais, Ciro Sales também é ator, cujo ofício tangencia a relação com seus espectadores, ávidos por se aproximar do seu ídolo, criando alguma intimidade com ele. É nessa dupla função – daquele que ilumina as sombras e, ao mesmo tempo, sobre o qual a luz é lançada – que apresentamos o nosso bate-papo.
Boletim Persiana Indiscreta – O CatFish é um programa da MTV que tem como objetivo desvendar casos virtuais de pessoas que mantêm relacionamentos à distância. Manter-se na virtualidade é uma forma de ter preservada a intimidade? O que acha que ocorre nesses casos? Nas suas investigações, surgiu algo que lhe causou, especialmente, o sentimento de surpresa?
O CatFish Brasil é uma busca por clareza. A gente sai em uma jornada para lançar luz nas áreas sombrias do relacionamento virtual da pessoa que nos procurou, e, na medida em que mentiras são desvendadas, essa pessoa vai se recolocando e se re-entendendo naquela relação, com nosso apoio e mediação. O que tenho aprendido, depois de duas temporadas conduzindo o programa, e com a terceira batendo na porta (estreia em julho, na MTV), é que é muito difícil tentar estabelecer um padrão para o comportamento virtual das pessoas no campo afetivo, principalmente dos jovens – que são a absoluta maioria dos casos que desenvolvemos. Ao mesmo tempo em que algumas pessoas que buscam um relacionamento virtual querem ter preservada sua identidade e almejam manter-se virtuais, outras se utilizam das redes para ampliar as possibilidades de encontros, e querem efetivá-los presencialmente. Se muitas pessoas acabam optando por usar uma foto fake, um avatar, para ocultar sua aparência por motivos diversos, outras são as próprias pessoas das fotos, mas não aceitam aparecer ou encontrar por inabilidade em se portar na presença do objeto de seu afeto. O que dá para inferir da experiência com todos esses casos é que o movimento da virtualidade dos relacionamentos não tem necessariamente a ver com a preservação da intimidade, posto que a quase totalidade dos “namorados virtuais” que conheci não tinha qualquer pudor em compartilhar relatos bastante íntimos, detalhes muitos pessoais de suas vidas, suas personalidades, aspectos particulares de suas famílias, relações com amigos, informações sobre o ambiente de trabalho. E é justamente esse compartilhamento de intimidade que garante a subsistência desse tipo de relação, pois é dessa forma que se constrói certa confiança entre as partes – ou ilusão de confiança –, que mantém os amantes conectados mesmo sem o contato físico. Curioso perceber, por exemplo, que isso se verifica mesmo em casos de pessoas usando fotos aleatórias e mentindo sobre vários aspectos de sua biografia (pessoas que têm verdadeiros avatares para se relacionar virtualmente). Por exemplo, já aconteceu, no programa, de desvendarmos ao longo da investigação que o que se sabia sobre a pessoa era falso: foto, educação, trabalho, endereço; e no encontro que promovemos ao final, confirmarem-se no casal os sentimentos de união, conexão, confiança. Porque havia muita intimidade compartilhada. Arrisco dizer que é a intimidade – quando gera identificação e fortalece a ideia de casal – que pavimenta o caminho do perdão e da superação das mentiras em casos de amores virtuais.
Boletim Persiana Indiscreta – Como você, ator, pensa a intimidade hoje em dia, no tempo em que a exibição do particular se tornou uma ferramenta importante de publicidade?
Acredito que os critérios que levam cada indivíduo a manter privado ou público algum aspecto de sua intimidade são bastante pessoais, construídos através de referências familiares, exemplos de amigos ou reprodução de comportamento das pessoas que esse indivíduo admira. Da mesma forma, o julgamento de qualquer um de nós sobre alguém estar “se expondo muito” ou “sendo reservado” também é fruto de construções particulares e relativas. Por isso, tento não julgar quando vejo ao meu redor um devassamento de intimidades, nas redes, na mídia, na imprensa, em ambientes públicos. Mas vejo que muito sobre a intimidade que se perde nos dias de hoje atende mais à repetição leviana ou a processos viciosos do que a uma escolha clara. Por exemplo, um artista que tenha muitos seguidores em uma rede social pode entrar em um padrão de comportamento onde acredite que, para atender às expectativas de seus seguidores, precise expor mais e mais a sua intimidade. Ele é convencido de que essa exposição gera fidelidade, engajamento e aumenta sua popularidade como um artista/influenciador. Sabemos que isso é real, pois numa relação de admirador e objeto de admiração sentir-se íntimo faz muita diferença, alimentando a admiração. Mas esse “sentir-se íntimo” também cria vícios e comportamentos abusivos que podem acabar com a paz do artista hipotético, e tornar menos eficaz o seu objetivo inicial de influenciar seus seguidores. Por isso, tento sempre buscar um equilíbrio e fazer escolhas sobre que aspectos de minha vida íntima, família e amigos exponho ou preservo com responsabilidade. Veja: eu sou daqueles que tentam sempre responder a todos que me procuram, que me escrevem, que demonstram afeto. E respondo em igual medida de afeto, buscando gentileza e cuidado, sendo grato e reverenciando o tempo que alguém dedicou para mim. Mas isso não significa que não posso ser seco com alguém que perde o respeito, para justamente traçar com clareza os limites da intimidade. Como ator, em cena no palco ou na tela, estou me colocando a serviço de um propósito, uma situação, um discurso, e isso pode ser algo de uma exposição enorme – inclusive abarcando aspectos de minha intimidade que talvez não fossem expostos no exercício do ofício, não me interessaria em expor. Só que não é por ser ator que preciso deixar livre e irrestrito o acesso à minha intimidade.