
Gérard Wajcman – Psicanalista em Paris, ensina no Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII, onde dirige o Centro de Estudo de História e de Teoria do Olhar. Escritor e Autor de Fenêtre, chroniques du regard et de l’intime, L’objet du siècle (1998) e L’œil absolu, Colección seguido de La avaricia, Les experts, e o recente Les series, le monde, la crise, les femmes.
Não fui eu quem encontrou esse título, “As fronteiras do íntimo”, foi Murielle Gagnebin. Como acontece por vezes com as almas amigas, ela viu antes e melhor do que eu o que poderia importar para mim, e que, acredito, importa. O íntimo, evidentemente, não é algo que cai do céu, já que, em um livro que consagrei às janelas, tendia justamente a definir as condições de possibilidade desse núcleo subjetivo que chamamos o íntimo. Supus, de fato, que não se tratava de algo dado, mas que o íntimo tinha uma estrutura singular e uma história; consequentemente, que não houve íntimo desde sempre – nem existirá forçosamente para sempre. Finalmente, acabei circunscrevendo-o como um lugar de essência ao mesmo tempo arquitetônica e escópica: o espaço onde o sujeito pode estar e sentir-se fora do olhar do Outro. Um espaço em exclusão interna, uma ilha, o que chamamos de nosso lar (le chez-soi), onde o sujeito escapa à própria suposição de ser observado. É a possibilidade do escondido. Pode acontecer que não haja para um sujeito nenhum lugar para onde ele possa escapar dessa suposição. Isso nos dá uma ideia do inferno. Embora tenha uma essência arquitetônica, esse lugar não se encarna necessariamente em uma arquitetura. E podemos nos sentir “em casa” de maneiras diversas, em uma multidão, por que não?, em um hotel, em plena natureza. Que seja dado como certo que possamos nos sentir “em casa” no Outro requer sofisticar um pouco a noção do íntimo.

Imagem: Fotografias – A mão de Bertha Röntgen, primeira imagem em raios X realizada por Wilhem Conrad Röntgen, em 1896. Kiss 2, X-Ray art, Wim Delvoye, 2000.
Lick 3, X-Ray art, Wim Delvoye, 2000.
Partindo do nascimento histórico do íntimo, minha hipótese concerne ao fato de que ele teria tomado corpo em um domínio a priori inesperado, nem naquele no direito, onde parcialmente se elabora a ideia de “privado”, nem no domínio da filosofia, mas no da arte. Na arquitetura, já o evoquei; portanto, não foi aí que o íntimo foi concebido e pensado. Foi na pintura. Isso ocorreu na Renascença. De um traço: o íntimo instaurou-se com a instauração do quadro moderno, definido por Alberti como “janela aberta”. Conferindo a esse fato a maior extensão possível, vislumbro que o quadro moderno teria, em um único gesto, instaurado a ideia cartesiana de que o homem teria doravante o direito de olhar para o mundo, com Deus, e definido o íntimo como esse lugar onde o homem pode estar separado do mundo, de onde, através da janela, em segredo, pode contemplá-lo, e onde, fora de todo olhar, pode olhar-se a si mesmo. Se ele é como eu digo, isto é, ao mesmo tempo fonte da potência do homem que se apropria do mundo através do olhar e berço desse território interior onde se desenvolve a interioridade, vocês reconhecerão que tenho alguma razão para considerar a instauração do quadro albertiano como uma reviravolta fundadora de um novo tempo.
Esse tempo ainda é o nosso. Mas por quanto tempo?
Para nos atermos ao íntimo, precisamos fazer aparecer aqui seu desafio trágico e crucial. Aí jaz seu desafio atual. Porque não devemos simplesmente considerar a possibilidade do escondido como um ganho ou uma conquista, em termos de mais ou menos: é uma condição absoluta do sujeito. Eu diria que só há sujeito se este pode não ser visto. Trata-se aqui do sujeito moderno, que pensa, e que então existe – o que vale dizer que o sujeito olhado não pensa. Portanto, no tempo moderno, o íntimo, o território secreto da sombra ou do opaco, é o próprio lugar do sujeito.
Falar do íntimo em termos de território levanta forçosamente uma questão sobre fronteiras. Esta questão coloca-se atualmente. Mas se é importante refletir sobre isso, não é tanto para refinar uma topologia do íntimo (seguindo o fio de Lacan, que inventou um antônimo ao íntimo que não o tem: o êxtimo), senão por conta da urgência de uma ameaça. Ameaça que paira sobre o íntimo, que pesa hoje em dia sobre cada sujeito.
Existe uma política do íntimo. O íntimo pode estar ameaçado. Ele deve ser defendido.
Invocar um direito ao escondido conduz a dar do íntimo uma definição que vai além daquela arquitetônica e escópica, mais além também da psicologia ou da antropologia: o íntimo toma dimensão política, e fundada sobre a força. Porque a definição que proponho, de um lugar livre de qualquer olhar, implica uma relação de poder, ao poder, ou mais exatamente, uma separação dele. Trata-se, com efeito, de manter um território fora da potência sempre totalitária do Outro. Isso constitui a condição real do íntimo: que possamos nos reportar ao direito ao segredo. O íntimo se delineia sobre o fundo de um Outro benthamiano, de olhar inoportuno, intrusivo ou invasivo, que quer ver tudo e saber tudo todo o tempo. Trata-se, portanto, de dizer agora o que pode fazer limite a esse desejo sem limite. É possível invocar a lei. Mas a lei preserva o privado; ou, melhor, o privado é aquela parte que pode ser protegida pela lei. O íntimo excede, não saberia se derivar da lei, e unicamente procede da possibilidade real que um sujeito tem de se esconder e permanecer em silêncio. Seu garante é material, isto é, que o direito ao segredo se sustenta apenas no próprio sujeito, em sua força, e não no Outro, da lei. É um ato do sujeito que o conserva livre. Essa dimensão política é consubstancial à noção de íntimo, que nomeia o que nos é mais interior (o latim intimus é o superlativo de interior), mas que comporta a ideia de segredo em sua própria definição.
Distinguimos, à primeira vista, que intimidade, segredo e liberdade estão enodados.
Ainda aí, devemos entender que falamos de liberdade real, de liberdade material. Porque, como sustenta Jean-Claude Milner, a verdadeira questão da liberdade é dizer como obter que o mais fraco possa ser efetivamente livre face ao mais forte. Se as garantias jurídicas e institucionais são preciosas, elas permanecem bastante ilusórias. Isto é, como o íntimo, a doutrina das liberdades não se funda no direito, mas na força. Na verdade, diz Milner, estamos todos convencidos de uma coisa: deixando de lado os contos de fadas, em que o fraco se torna forte (quer dizer, o sonho revolucionário), não há para as liberdades reais, senão um único garante: o direito ao segredo, único limite material ao poder do Outro – que podemos chamar aí de Estado, instituições ou sociedade.
A partir disso, farei seis considerações para cernir o estado atual do íntimo.
A primeira refere-se ao que chamarei de interesse da psicanálise. Podemos ressaltar que durante a época romântica, a noção de íntimo tomou uma cor que vai manifestamente banhar a invenção de Freud. Vindo a delimitar o que é estritamente pessoal e mantido oculto, ela isola o que toca à sexualidade como o que é mais pessoal e oculto. A sexualidade designada como o núcleo opaco do íntimo. Essa cor pinta sempre mais ou menos o íntimo.
Mas esse interesse é ainda mais radical, porque o íntimo nada mais faz que delimitar o lugar do mais subjetivo do sujeito: é, como já mencionei, sua própria condição. Não poderia haver sujeito sem segredo, isto é, não há sujeito que seja inteiramente transparente. Todo sonho de transparência carrega com a dissolução de toda a opacidade, aquela do próprio sujeito. A democracia é evidentemente animada por um ideal de transparência, mas em princípio ela concerne ao poder, não aos sujeitos. Não somente ela opõe a opacidade do sujeito e a transparência do Outro, do Estado, mas ela supõe que se defenda essa opacidade contra qualquer intrusão, o que é também a defesa de sua liberdade. É aí onde está o problema atualmente. De fato, nossa democracia parece animada por uma vontade perfeitamente oposta: por um lado, o Outro tende a tornar-se cada vez mais opaco; por outro lado, os sujeitos são levados a se tornarem cada vez mais transparentes. Com efeito, sabemos cada vez menos sobre a máquina do poder e, no entanto, recolhendo todo tipo de informações, o poder sabe cada vez mais sobre cada um de nós.
A psicanálise deve se situar em função disso. O que engendra uma aparente estranheza, porque a psicanálise, que visa à elucidação, se coloca do lado do escuro, o lado escuro da debilidade que é aquela dos sujeitos diante do poder. A psicanálise, que tende a fazer falar, se assenta do lado do segredo. Isso se deduz facilmente do que precede, ou seja, que tudo o que ameaça o direito ao segredo não ameaça apenas a intimidade e a liberdade, ameaça a própria existência do sujeito. Sem o direito ao segredo, sem o oculto, não há sujeito que pense, logo não há sujeito que exista. Compreende-se então que não se trata apenas de um interesse da psicanálise, mas que a defesa do íntimo e do secreto é propriamente uma causa da psicanálise.
Aqui se desenha a dimensão política da psicanálise. Não abrange uma nova forma de “aplicação”, sua intervenção no campo político armada com seus conceitos, mas evidencia uma dimensão política interna, própria à psicanálise, simplesmente porque a possibilidade do íntimo é, finalmente, a própria possibilidade da psicanálise.
Que se trate de videovigilância, de relatórios médicos ou de procedimentos que busquem avaliar a periculosidade futura das crianças, qualquer medida que coloque em perigo o íntimo e o direito ao segredo constitui uma ameaça à psicanálise – que, por outro lado, é visada diretamente. Daí se faz necessária uma vigilância política e, hoje inclusive, um estado de alerta.
Minha segunda observação trata da natureza das ameaças às fronteiras do íntimo.
O direito ao escondido é uma barreira, constitui a fronteira do íntimo. Se há razões para falar de fronteiras, no plural, não é porque essa fronteira seria diversa ou variável, ou que houvesse, de mais ou de menos, variações do secreto ou do íntimo: o direito ao segredo e o íntimo são absolutos – ou há ou não há. Pelo contrário, como toda fronteira, ela delimita dois espaços: o íntimo, o lugar do sujeito, e o campo do Outro. A fronteira, portanto, pode ser vista de ambos os lados. Isso abre nosso olhar para três estados possíveis da fronteira. Ou ela permanece hermética e protege o íntimo contra toda intrusão – é o que define certo estado de democracia real. Ou há franqueamento – mas esse franqueamento pode ser concebido nos dois sentidos. Ou há invasão do íntimo, ou há uma renúncia ao íntimo. O primeiro é o fato do Outro, do poder; o segundo é o fato do sujeito.
Consideremos, em primeiro lugar, o ato do poder. Seja o fato de que o Outro mete seu nariz, seu olho, na intimidade. É uma forte tendência. Isso é marcado massivamente pelo fato de estarmos no tempo da videovigilância. Policial, urbana ou militar, ela está atualmente mais do que generalizada: ela é planetária, pois vários olhos gravitam dia e noite ao redor da Terra – como podemos ver facilmente clicando no Google Earth. Entramos em tempos paranoicos. Mas a questão grave que impõe a presença de câmeras em todos os cantos das ruas é que não se trata apenas de um progresso técnico que permite ao poder se estender e invadir o espaço público, mas que com esse progresso técnico uma inversão tenha sido insensivelmente operada. Outrora, quando desenvolviam-se técnicas de vigilância, era para desmascarar o segredo dos criminosos; mas as técnicas atuais são colocadas a serviço de fins absolutamente opostos: elas estão aí para vigiar os inocentes e controlar seus segredos. A sociedade de controle, da qual falava Deleuze, é uma sociedade na qual se controlam os inocentes. E é isso que engendra esse sentimento difuso de criminalização da sociedade em que todos somos olhados como culpáveis em potencial ou que todos se ignoram.
No sentido dessa criminalização galopante e generalizada da sociedade, podemos trazer à luz certos procedimentos atuais a serviço de uma política dita preventiva da criminalidade. A prevenção tornou-se uma palavra-chave da época. De tal forma que o díptico de Foucault que enunciava “Vigiar e punir” foi substituído pelo “Vigiar e prevenir”. De repente, a novidade reside no fato de que os procedimentos atuais de prevenção da delinquência terão como objetivo, ao buscar a máxima eficiência, ir tão longe quanto possível. Ou seja, tais procedimentos não vão querer influenciar simplesmente os fatores ditos ambientais de emergência da criminalidade, mas visarão o ser dos sujeitos. Ou seja, para além das medidas sociais, escolares ou educativas, jurídicas ou policiais, os procedimentos preventivos doravante fazem parte da medicina e são concebidos por especialistas em saúde mental. Eles se apresentam com o rosto da ciência e sob a garantia de instituições científicas nacionais. Isso os deixa acima de qualquer suspeita, já que a ciência, como se sabe, não poderia buscar nada que não fosse o nosso bem.
Posso falar em particular do relatório do Inserm sobre a prevenção da delinquência, “Transtornos de conduta em crianças e adolescentes”, uma “perícia coletiva” que foi oficializada em 2005. A delinquência, noção sociológico-jurídico-policial, é abordada como “transtorno de conduta”, uma noção psiquiátrica derivada do DSM-IV. Seus índices “preditivos” são escalonados em quatro categorias: comportamento agressivo em relação a pessoas ou animais; destruição de bens materiais sem agressão física; fraudes ou roubos; violações graves de regras estabelecidas. Irei direto ao ponto.
O relatório nos alerta sobre a assombrosa precocidade dos signos desse transtorno: “A agressividade, a indisciplina e o débil controle emocional durante a infância foram descritos como preditivos de transtorno de conduta na adolescência”. O relatório afirma que esses comportamentos devem ser diferenciados dos chamados “comportamentos normais”. Detenho-me um segundo aqui porque isso implica em certa maneira de pensar o indivíduo, de saber que o comportamento de um sujeito está diretamente conectado à normalidade do grupo. Assim, vemos o campo da psicologia ocupado por um pensamento que raciocina não em termos de pessoas, mas de “população”. É para onde Foucault havia apontado a ameaça, fazendo surgir a estatística como o novo Leviatã (o DSM-IV, referência psiquiátrica mundial, é, em si, um tratado estatístico de “desordens” – disorders). Esses médicos psiquiatras e psicólogos especialistas não raciocinam sobre pessoas individualizadas e singulares, em termos de casos, mas em termos de tipos, sobre seres estatísticos nos quais o sujeito como absoluta singularidade é reabsorvido, abolido – em termos lacanianos eu diria, foracluído. Sabe-se agora que esses especialistas decidem sobre a anormalidade tomando o critério da idade. Diz-se que manifestações tais como agressões físicas, mentiras ou roubo de objetos são relativamente frequentes em criança pequena, e só se tornam “anormais” quando são muito frequentes e perduram para além dos quatro anos de idade. Consequentemente, o grupo de especialistas preconiza uma detecção médica sistemática de cada criança desde os 36 meses, em nome do fato de que “nessa idade se pode fazer a primeira detecção de um temperamento difícil, de uma hiperatividade e dos primeiros sintomas de transtorno de conduta”. Isso os leva a recomendar que todos os profissionais de saúde aprendam a reconhecer os critérios que definem os transtornos de conduta, e isso concerne, em primeiro lugar, aos envolvidos em serviços de proteção materno-infantil (PMI), em centros médico-psico-pedagógicos (CMPP) e a equipe médica da educação nacional. Não ousamos acrescentar que esses especialistas do Inserm identificaram os fatores de risco no decorrer do período pré-natal e ainda perinatal, como, por exemplo, uma mãe muito jovem, o consumo de substâncias psicoativas durante a gravidez, o baixo peso ao nascer ou as complicações em torno do parto… Como resultado, os especialistas recomendam uma triagem das famílias que apresentam esses fatores de risco no acompanhamento médico da gravidez. To make a long story short, esse relatório ilustra e justifica mais e melhor a intuição de Foucault sobre o biopoder, ou seja, que a vida e os corpos se tornaram objetos de poder. O relatório pode ser consultado no site do Inserm.
O sistema de avaliação e fichamento de crianças recomendado pelos especialistas do Inserm é um testemunho de que entramos em um tempo no qual o olhar do mestre é ilimitado, um olhar intrusivo, apoiado na ciência e na técnica. O sujeito, que anteriormente tinha a alma observada por Deus, tem agora seu corpo examinado por especialistas até os vincos mais secretos de seu espírito – no ventre de sua mãe, ou mesmo antes. O íntimo, que se definia como sendo uma janela aberta ao sujeito e fechada ao Outro, é incessantemente sondado e extorquido.
A partir de agora, um imenso dispositivo sitia as fronteiras do íntimo.
Agora temos que deslocar o ponto de vista, invertê-lo. É que há outra maneira de ultrapassar a fronteira do íntimo: no outro sentido. É o que concerne àqueles que, alheios a qualquer restrição, abrem sua privacidade, a confessam ou a expõem. De fato, é aí que reside o sentido mais imediato das “imagens vergonhosas”, que não são imagens roubadas, mas exibidas deliberadamente. Devemos entender que não se trata para o sujeito de renunciar ao direito ao segredo, mas, ao contrário, de um ato livre, de certo exercício desse direito. O direito de permanecer em silêncio, cuja invocação ritual ouvimos sempre quando há uma prisão nos filmes policiais americanos, não obriga a se calar – cairíamos diretamente no totalitarismo, segundo expressou Lacan: tudo o que não é proibido é obrigatório. Podemos observar de passagem que esse direito ao silêncio encarna o espírito da América, uma nação fundada por perseguidos, que, como nota J.-A. Miller, se deu uma constituição inédita, colocando como princípio não a proibição, mas a permissividade. Isso não impede a existência da censura, mas é preciso dizer que esta não procede da Constituição.
Seja como for, arte e literatura são dois lugares de exercício dessa liberdade para expressar o íntimo. Expressão que pode adotar todo tipo de formas: pornografia, exibição, confidência, confissão, prestação de contas, declaração, que se trate de A vida sexual de Catherine M., de filmes de Larry Clark, de fotografias de Araki ou de Nan Goldin. Claro, pode-se argumentar que não aguardamos eles para que o íntimo seja exposto, mas podemos sublinhar justamente que, no século XVIII, por exemplo, quando Rousseau publica suas Confissões não se trata estrittamente de uma obra íntima, porque o que chamamos de diário íntimo é um diário que permanece secreto, não publicado.
O que caracteriza nosso tempo é que, além de se dizer no segredo do consultório do analista, o íntimo hoje se publica, se espalha nas telas e se expõe nas paredes dos museus. E acrescento: sem vergonha. Entramos no tempo do desvelamento, que é também um tempo shame free. O que não significa uma completa ausência de pudor que levaria a uma provocação sem limites, mas simplesmente um rebaixamento ou certa dissolução do sentimento de vergonha. Admitamos que existiriam certas razões para nos regozijarmos por esse desembaraço. Segundo certas opiniões, é exatamente isso que hoje marca a exposição do que corresponderia à categoria de “imagens vergonhosas”, isto é, que hoje em dia elas são expostas sem vergonha. Imagens vergonhosas não causam facilmente vergonha. São tempos ruins para os pornógrafos. Quer dizer, o franqueamento do qual falo não pode ser analisado na arte de hoje com os termos de subversão, escândalo, provocação, profanação ou ultraje. A queda das proibições não apela ao sacrilégio ou à blasfêmia, mas à vida cotidiana. Atualmente, o escândalo é tão fácil que está ao alcance da publicidade mais banal. É o que faz com que as obras de arte que na atualidade se pretendam provocadoras devam jogar com a concorrência, com uma inflação sempre fatigante, e acabar parecendo insignificantes, às vezes beirando ao grotesco ou ao lamentável. Felizmente, aqui e ali ainda existem alguns censores irritados para atribuir cheiro de enxofre a certas obras que, sem suas invocações às proibições, não fariam cócegas nem a um gato, como se diz. É necessário que seja dito: hoje, já vimos de tudo. Então, como podemos ainda provocar escândalo? O ardor inquisitorial de certa moral minority não é nada mais que o signo do colapso das proibições, e o desejo de restaurar valores é o melhor índice de que os tempos mudaram, de que as imagens vergonhosas apenas causam vergonha, de que seu poder desestabilizador está singularmente debilitado. Isso deve nos ocupar.
Nessa mesma linha, gostaríamos também, com o intuito de reduzir um pouco a ideia de novidade relacionada às imagens vergonhosas sem vergonha, de contrapor alguns precedentes históricos. Por exemplo, depois de ler Daniel Arasse, haveria que dar certo crédito à Vênus de Urbino, de Ticiano, como paradigma das “imagens vergonhosas”. Aquela mulher nua que, deitada, se acaricia e sorri para nós, é uma imagem vergonhosa e, em certo sentido, sem vergonha. Exceto que, e esse é o cerne da questão, essa imagem íntima foi destinada apenas à intimidade de um único olhar, o de Guidobaldo della Rovere, quem encomendou essa pin up a Ticiano para seu uso exclusivo – o que coloca, portanto, um problema real não tanto com relação à exibição de tal pintura na atualidade, mas a seu efeito de sentido em um espaço público da arte. O íntimo então ia para o íntimo. Hoje vai ao museu, esse grande espaço da democracia do olhar fundado no princípio de que toda obra visível deve poder ser vista por todos – o que determina certa antipatia estrutural do museu por tipos como Guidobaldo della Rovere e os colecionadores particulares.
Então, aqui está vestido o quadro dessa linda atualidade. Fomos levados a uma constatação dupla. Por um lado, em nossa época que avança sustentando a bandeira dos direitos humanos, o direito material ao segredo está ameaçado materialmente em todas as partes. Ora, teríamos alguma razão ao defender que o primeiro direito do homem é o direito ao segredo. A segunda constatação é a de uma ostensividade generalizada do íntimo. O próprio tema das “imagens vergonhosas” parece se situar nessa vertente, o que, portanto, orienta o debate, essencialmente, para as diversas modalidades de recepção dessas imagens, por exemplo, sobre os pânicos morais de que fala Ruwen Ogien.
De minha parte, sugiro considerar a questão confrontando-a com outra vertente, a da ameaça geral ao íntimo. Creio que pode ser útil para a reflexão em torno do estatuto das “imagens vergonhosas”. A saber, existem dois lados: o do íntimo exposto e o do íntimo extorquido. A questão que eu discuto, e que me preocupa, recai sobre a relação eventual entre uma e outra.
Minha hipótese é que a atualidade da ostensividade das imagens do íntimo não resulta apenas do exercício moderno de uma liberdade, mas constitui, paradoxalmente, uma resposta à ameaça sobre o íntimo. Claro, poder-se-ia afirmar que o véu é uma resposta à ameaça hipermoderna de um olhar ilimitado sobre o íntimo. Ora testemunhamos na arte um movimento de desvelamento, algo que, afinal, poderia estar perfeitamente sintonizado com o desejo de onividência do mestre moderno. Ora as imagens da arte em verdade o detêm. Mas é preciso dizer em quê e por quê.
Tudo isso significa que, para compreender o que são as “imagens vergonhosas” na atualidade, não é o proibido que devemos observar, mas efetivamente, pelo contrário, é essa máquina-de-tudo-ver, essa máquina de extorquir o íntimo que é hoje o poder nas mãos do mestre hipermoderno.
A atualidade das “imagens vergonhosas” seria, nesse sentido, a atualidade das ameaças sobre o íntimo. Se uma função da arte é mostrar o que não podemos ver, não podemos portanto nos limitar a pensar que o que não podemos ver é o que é proibido, que o “de mau tom”, para retomar o título do livro de Dominique Baqué, seria uma resposta ao “bom tom chique” de uma moral majority que imporia esconder o que não poderia ser visto. Não tanto porque o íntimo seria subitamente menos da proibição do que da confissão, como pensava Foucault, mas porque está pura e simplesmente ameaçado de dissolução.
Façamos simplesmente a questão: quais podem ser o sentido e o valor de expor imagens pornográficas em um mundo em que somos vistos em toda parte, a todo o tempo e sob todas as costuras, auscultados até o fundo do corpo e até mesmo as profundezas da alma?
Eu já o disse, uma nova figura assombra esse tempo, um espectro ou um fantasma: o de um sujeito transparente. É o correlato do que chamei o olhar ilimitado do mestre. A invenção dos raios X, no final do século XIX, engendrou um sonho científico de transparência do corpo – que chegou a inspirar a crença de que, graças a Röntgen, os pensamentos, ainda os mais secretos, não seriam mais secretos para quem exerce a medicina. É claro que hoje os desenvolvimentos da tecnologia parecem querer estender a potência da máquina até a instauração de um homem sem sombra, um sujeito totalmente transparente, de corpo e alma. Entre a explosão da imageria médica, a perpétua inovação em matéria de técnicas de vigilância policiais ou de espionagens, o triunfo da medicina legal e da anatomopatologia ou o estranho deslocamento da expertise psiquiátrica até a doravante chamada “autópsia psicológica”, parece que os poderes hoje estão centrados no olhar e que o exercício do poder consiste principalmente em multiplicar sua potência de vigilância sobre os sujeitos e de investigação dos corpos. Somos tentados a pensar que o que antes era um atributo divino, a onividência de Deus, seu poder de ver tudo sem ser visto, tornou-se hoje um atributo do poder secular armado pela ciência e pela tecnologia.
Por essa razão, é importante olhar para o que nos olha e desvelar para todos os olhares o que isso faz de nós – sem que o vejamos –, sujeitos sob controle.
Não é apenas forçar as coisas para sobrepor esse fantasma da ciência a um ideal de polícia – a fotografia tem desempenhado claramente um papel histórico nisso. Como índice de que esse processo de recobrimento vem ocorrendo hoje, destacarei um traço televisivo: quero falar sobre essas recentes séries policiais nas quais se constata a substituição progressiva do personagem policial, do privado ou do detetive, pelas figuras do especialista e do médico forense. A polícia, cujo objeto é defender os vivos, desenvolve sobretudo técnicas de investigação de cadáveres, de objetos e de materiais. Da mesma forma, quando os médicos entendem desenvolver a “autópsia psicológica” como um conhecimento especializado, podemos nos inquietar com que isso signifique que o sujeito enquanto tal comece a ser pensado como um cadáver, no qual se pode penetrar até os mínimos cantos para extirpar sua verdade. Sustentado pelo fantasma científico da transparência, esse direito de olhar do poder, em oposição ao direito ao segredo do sujeito, é um problema político maior, agudo.
Também o é para a reflexão sobre a arte hoje. Não é que essa questão se coloque especificamente para a arte, mas que, de acordo com a ideia que faço da arte, acredito que seja atualmente um lugar onde a questão do fantasma da ciência se coloca e se expõe, no sentido de que a desvelamos onde se mostra como tal. A arte é um lugar onde o fantasma da ciência e o do mestre moderno são pensados, talvez, com maior profundidade e onde, além disso, a ameaça que tal fantasma faz pesar é tratada. Vou dar um exemplo. Quando Wim Delvoye faz imagens radiográficas de um beijo ou de atos sexuais, ou quando Bernar Venet expõe um autorretrato no scanner, esses artistas não fazem nada senão apropriarem-se de técnicas científicas por vezes de ponta, como já tem sido feito na arte há muito tempo – acredito que Meret Oppenheim foi a primeira a fazer retratos com raios X, em 1964, especificamente um autorretrato.
Ao expor a hiperintimidade científica do corpo, essas imagens de artistas formam, de fato, uma resposta crítica ao fantasma da ciência de um sujeito transparente – ou seja, conhecível integralmente. Essas imagens científicas alertam sobre os desejos da ciência e suas pretensões em torno de um sujeito totalmente calculável, avaliável, como é dito hoje, isto é, totalmente previsível. De fato, o que essas imagens de transparência mostram, o que mostram os artistas ao mostrarem imagens científicas de transparência com o fantasma científico é que ainda existe, no entanto, certa opacidade irredutível. Existe um limite para a ciência. Mais adiante direi qual.
Ainda permanecendo, por um instante, seguindo o fio de uma arte crítica ou de uma arte de resistência, não posso deixar de lado a referência a um trabalho de Bruce Nauman. Devo dizer de toda forma que considero Bruce Nauman uma espécie de pensador universal. Na minha opinião, ele é o canivete suíço do nosso tempo. É o grande revelador do novo mal-estar na cultura. Além disso, desenvolvi uma lei que batizei a Lei de Y.A.T.U.O.D.B.N.A.A.L.S. –y-a-toujours-une-oeuvre-de-Bruce-Nauman-adaptée-à-la-situation.[2] Para a ocasião, falarei sobre essa peça sonora que vimos em Paris e, mais recentemente, em Londres, na Tate Modern. Entra-se livremente em uma pequena sala acolchoada, escura e vazia, e ao se aproximar das paredes ouve-se vagamente; em seguida, aproximando-se mais das divisórias, ouve-se mais claramente uma voz que murmura firmemente: Get out of my mind, get out of this room. É a voz do próprio Bruce Nauman. Então, alguém vai ao museu, entra tranquilamente em um espaço para ver, como é justo, e uma vez dentro, descobre primeiramente que não há nada para ver; logo depois, que está inside the mind of Bruce Nauman, e que o melhor é sair correndo dali. Uma obra que expulsa o espectador é, em qualquer caso, o cúmulo para um trabalho de museu. Mas se algum dia eu tivesse que escolher um Grande Prêmio da Arte contra a “autópsia psicológica”, premiando a obra mais aguda em denunciar esse desejo dos especialistas de entrar em nosso espírito, a obra de saúde pública anunciando que os avaliadores já estão em nossas cabeças e, em suma, a obra que defendesse mais ferozmente o íntimo, nomearia sem hesitar essa peça de Bruce Nauman.
Agora, para començar a finalizar e responder ao mesmo tempo certas questões ainda em suspenso, tenho que enfrentar o paradoxo que não deve ter escapado aos espíritos atentos.
Uma vez que, falando aqui em meu nome, mas também, quer eu queira ou não, em nome da psicanálise, é suposto a mim representar um discurso do qual se poderia dizer que iria no sentido da extorsão do íntimo. Foucault disse isso. O tudo-dizer caminharia direto à confissão – a igreja e o comunismo praticaram isso. Se vamos supor que a psicanálise está do lado do olhar inquisidor, alimentarei os maus espíritos com outro índice suspeito, o fato de Freud ter concebido o dispositivo material da psicanálise realizada por Freud, a relação da poltrona com o divã, invocando o poder que isso lhe daria de “ver sem ser visto”, remetendo assim, bastante inocentemente, eu acho, a um atributo divino (remeto a dois textos – “Sobre o início o tratamento”, de 1913, em Artigos sobre a técnica, e “Um estudo autobiográfico”, de 1925). De modo que, instalando-se na sua poltrona, o psicanalista seria suposto sentar-se no trono de um Deus onividente.
Todo o problema circunscreve-se a duas questões que implicam duas barreiras. A primeira é ética: se o analista dispõe da onividência, dá todo seu valor ao fato de não usá-la. O que não repousa senão em uma escolha ética na qual a análise se sustenta: na sua função de escuta, o analista é não-vidente (talvez seja o que lhe confere poder, como Tirésias, para ver longe). A segunda barreira seria real: do poder ver tudo resulta que tudo pode ser visto? Na verdade, o problema está aí, porque isso convoca a questão de um limite para o olhar, fundado não na proibição, em uma escolha ou qualquer contingência, mas em um impossível, sobre o real.
Tudo isso faz sentido apenas se colocarmos a psicanálise em perspectiva no século. Jacques-Alain Miller dedicou-se brilhantemente a isso em um programa de rádio recente. Deve-se efetivamente dizer que o primeiro efeito da psicanálise em nosso mundo é o de ter modificado o senso comum ao reivindicar em alto e bom tom sua afirmação: dizer tudo faz bem. Em todo caso, é assim que a sociedade o interpreta. Hoje, pode-se considerar que a ideia sobre os benefícios de dizer tudo caiu no senso comum. Antes, em outros tempos, havia coisas que não precisavam ser ditas. O sagrado poderia ser ofendido por um dizer. Há que medir que isso dava ao fato de dizer todo seu valor. A instância da censura teve de entrada um papel importante ao longo dos tempos, e Freud não deixou de reconhecer essa importância, dando à noção de censura um lugar em sua teoria. Os escritores conheciam o problema da época na qual o fato de dizer contava. O parceiro do escritor era a censura. Leo Strauss foi quem evidenciou o papel da perseguição na arte de escrever, que obrigava a uma escritura da dissimulação, uma “arte de escrever nas entrelinhas”, de modo que todos os escritos deveriam ser mensagens cifradas. Até mesmo o Rousseau das Confissões, a quem fiz alusão anteriormente, professava uma franqueza sem limites, confessava que fazia uso de certa arte de escrever com objetivo de não revelar aos malvados o que verdadeiramente pensava. Resta constatar que hoje o dizer tudo triunfou. Estamos na idade da Internet, que evidentemente caminha em direção ao dizer tudo.
Esse é o ponto, isto é, devemos concluir que não estamos mais no tempo de Freud. Freud era de outra época, vitoriana, quando o pivô era a repressão do dizer, com sua coorte de censura ou repressão. Isso quer dizer que, em certo sentido, ele tomou essas noções de seu tempo. Portanto, nesse mundo de censura e repressão, a psicanálise evidentemente marcou o surgimento de uma libertação da palavra. Como Jacques-Alain Miller sublinhou, Dada ou o Surrealismo teriam se inscrito nesse fio.
Essa liberação da palavra induziu uma profunda mutação no século XX, correlativa a um enfraquecimento do sagrado. A psicanálise, disse ele, deve se declarar culpada a esse respeito: ela teve um efeito dissolvente sobre o sagrado. De entrada, durante seu primeiro século, a psicanálise teria sido contemporânea de uma arte tomada em uma dialética conflituosa batailleana entre sagrado, proibido e transgressão. Indo contra a censura e a repressão, a psicanálise marcha assim com a exibição provocativa de imagens vergonhosas.
Somente a atualidade do triunfo de Freud e da Internet, do triunfo do tudo dizer, traça um horizonte aparentemente mais melancólico para a psicanálise do século XXI: o que podemos esperar se o tudo dizer tem triunfado? Evidentemente, ainda existem alguns pânicos morais e censuras, restam batalhas libertadoras a serem combatidas. Mas concluir com isso seria um final chato-falso na verdade. O novo resultado do tudo dizer social é que ele dissolve o campo da linguagem. Isso quer dizer que o que é o triunfo de Freud é também uma derrota.
Somente sobre essa base plana surge então outra questão. É esta: é possível realmente tudo dizer? Tudo dizer supõe tudo resolver. Mas pode-se querer tudo dizer, temos um belo tudo dizer, há, felizmente para a psicanálise, alguma coisa que não se resolve, que não se arranja jamais e sobre o qual se pode profetizar sem risco que não se resolverá jamais. Alguma coisa que tem a ver com sexualidade. Alguma coisa na sexualidade da espécie humana que não se resolve nunca. Então, temos que nos arranjar com o que não pode ser arranjado. Aqui está o que traça suas perspectivas à psicanálise do tempo hipermoderno. O que não se resolve é exatamente o que Lacan chamou “o impossível da relação sexual”, o que não significa, obviamente – isso deve ser conhecido há algum tempo (Lacan lançou o assunto na década de 70) –, que não haveria relações sexuais, mas que na espécie humana não há um saber regulado sobre a relação entre os sexos. Os flamingos cor-de-rosa sabem muito bem, os porquinhos-da-índia sabem muito bem, mas o homem não sabe, e a mulher também não sabe. É por isso que a humanidade inventou todo tipo de saberes, como o casamento ou o Kama Sutra, para mitigar a falta desse saber.
Quer dizer que parece que há um mais além da proibição. A proibição era uma barreira que apelava à transgressão. A arte tem sido um lugar de liberdade face à proibição. Hoje, descobre-se que o proibido não era a última barreira, e que é, na verdade, uma maneira de humanizar pela lei, pelo simbólico, pela linguagem, o real de um impossível – seguindo nisso a lógica da palavra de Cocteau sobre Os casados da Torre Eiffel: “Já que esses mistérios nos ultrapassam, finjamos ser seu organizador…”. O proibido assume o lugar do impossível.
Isso é o que minha última observação traz. Eu diria que, de fato, a arte, na atualidade, se aloja aí, do lado desse real, e que as imagens vergonhosas se inscrevem justamente ali onde há algo que não se arranja na sexualidade, algo que não pode ser dito até o fim, nem visto até o fim. Abre-se na arte o espaço não da sexualidade, mas do mal-estar na sexualidade, do mal-estar no gozo.
Também é a abertura para uma arte de um tempo posterior a Freud. Na atualidade, temos a ideia de que é bom confessar todos os gozos, mas há algo diante do qual a palavra desfalece, não importa o que se faça. Quando se lê o romance de Catherine Millet, é precisamente isso que é narrado, um certo silêncio de gozo. Nan Goldin é uma grande artista do mal-estar no gozo, da desordem do amor. Ela é também uma artista do tempo da psicanálise atual, da verdade última da psicanálise – a do impossível. Aquelas imagens de travestis desconjuntadas às quatro horas da manhã, com o rímel escorrendo e seus belos vestidos totalmente tortos, são imagens do desvelamento da verdade do sexo – e do falo: surrado, flácido, não ereto. É a hora do falo cansado. É uma arte do sexo punk, quero dizer, de um no future do sexo. As imagens perderam toda a pompa. Não são imagens deliberadamente não excitantes. Nem feias, nem provocativas, nem repulsivas, nem nada desse gênero: simplesmente verdadeiras. Podem ser comoventes, belas, impressionantes, perturbadoras, o que se queira, porque não há nenhuma razão para que a verdade seja sempre feia ou desagradável. Porque o que essas imagens mostram é que há por trás da vistosa pompa, atrás das imagens e de toda coisa, a grande desordem sem remédio de amor. Por outro lado, Larry Clark, filmando adolescentes americanos, mostra uma sexualidade liberada, também da época do triunfo da psicanálise, uma sexualidade que conseguiu se dizer, quer dizer, também é uma sexualidade extenuada. Esses jovens ainda são, em certo sentido, filhos de Freud e da Coca-Cola.
Então, eu situaria as coisas da seguinte maneira: o mal-estar no gozo, o que não se arranja do lado da sexualidade, as imagens o mostram. Encontro aí a máquina lacano-wittgensteiniana que me anima sobre a questão da imagem, seguindo a proposição do Tractatus que enuncia que há o indizível, que existem coisas que não podem ser ditas, e que o que não se pode dizer se mostra. Extraio daqui, simplesmente, que as imagens vergonhosas não devem ser incluídas, atualmente, no registro de subversão e liberação, que elas não se insurgem contra o proibido, mas que encaram o impossível, à relação sexual que não existe.
O que me leva a mostrar, a título de conclusão, duas imagens radiográficas de Wim Delvoye. Essas imagens de raios X, que deveríamos classificar como imagens X, têm uma força de verdade extrema. Mas não ali onde acreditamos, ou onde vemos. Mostrando um beijo ou felação, elas estão para ser vistas, seguramente, como toda imagem. Mas, por um lado, essas imagens mostram algo que a olho nu não se pode ver, o interior dos corpos em atividade. E, por outro lado, elas mostram um truque que não vemos: como tudo isso funciona. Em suma, elas mostram que não é possível vê-lo. E que é normal que não possamos ver isso. Pode se fotografar o funcionamento íntimo dos órgãos sexuais, mobilizar para isso a ciência e as mais sofisticadas técnicas, mas isso nunca poderia revelar o segredo do sexo, de como funciona o human desire e a surpreendente máquina dos sexos, da qual ninguém tem os planos. Ao contrário da máquina de produzir cocô, que, por acaso, o próprio Wim Delvoye trabalhou arduamente para construir com total êxito. De tal maneira que a Cloaca-Turbo (que também oferece a visão de um mecanismo do interior do corpo) e a imagem de raio X de um ato sexual seriam os pingentes inversos um da outro: imagem de uma máquina que funciona, por um lado, imagem de uma máquina que não funciona por outro. Mais precisamente, eu diria, que essas imagens de raios-X, que lembram o famoso desenho anatômico de Leonardo, figurando um coito em corte, mostram acima de tudo que há algo que não se pode ver: como funciona o amor, o que constituiria o segredo da sexualidade. É sua dimensão crítica: elas se dirigem tanto aos médicos como ao mundo em geral para dizer: a busca pela transparência do corpo é um fantasma, porque há algo que nunca poderemos ver, e jamais saber e, consequentemente, jamais dominar: a relação sexual. Podem radiografar o corpo, autopsiar o corpo, torná-lo tão transparente quanto quiserem, mas nunca verão o segredo da relação sexual. Está aí, no fim das contas, o que definitivamente resiste à vontade do mestre de que “isso funcione” (ça marche). O saber do especialista quebrando a cara com a relação sexual; esse poderia ser o título da série de imagens de Wim Delvoye.
Por outro lado, é bastante divertido revelar que a primeira imagem de raios X realizada por Röntgen, inventor da radiografia em 1895 – mesmo ano do nascimento da psicanálise e do cinema –, foi a mão de sua mulher, e a primeira coisa que se vê é a sombra negra de sua aliança. Como se a primeira imagem que o interior do corpo de uma mulher revelasse de entrada fosse a presença de um homem, mais exatamente de um marido – para quem ela não poderia ter nenhum segredo. Isso certamente explica essa imagem. Nós nos perguntamos, na verdade, o que Röntgen teria em mente quando ele decidiu fazer, como primeira imagem, uma radiografia do corpo de sua esposa? Poderíamos dizer que Wim Delvoye mostra o que Röntgen tinha em mente. Não há que sonhar.