
Associada do IPB
Mais uma escrita precisa e preciosa de Maleval sobre aspectos cruciais, polêmicos e atuais sobre o autismo. A meu ver, leitura obrigatória para quem quer se iniciar ou se aprofundar no assunto.
Maleval inicia o livro com uma pesquisa vasta e rica sobre o conceito do autismo, da medicina à psicanálise. Visita os autores mais significativos de ambas as áreas que ajudaram a construir esse conceito e esse diagnóstico. Chega às pesquisas atuais genéticas e dialoga com o ponto de vista da medicina que a psicanálise não deve se abster de conhecer.

Diogo Calife – artista.
No capítulo seguinte, o autor destrincha sobre a fala, a linguagem e a enunciação dos autistas, abordando toda a peculiaridade e dificuldade que esses aspectos apresentam para eles. Maleval aponta que os autistas “testemunham que uma dificuldade em tomar autenticamente a palavra encontra-se no princípio dos seus transtornos, de modo que a proposição feita pelo psicanalista revela-se inquietante para eles” (pg. 17). Porém, eles concordam que é mais cômodo escrever daquilo que sofrem. Seguindo a mesma premissa do seu livro anterior – “Escutem os autistas” –, o autor privilegia e usa como bússola, em todo o livro, os depoimentos dos próprios autistas. Adverte que “é dever dos psicanalistas debruçar-se atentamente sobre as autobiografias de autistas de alto funcionamento, inclusive sobre textos redigidos por sujeitos que apresentam transtornos muito mais severos, pelos quais buscam a dar a conhecer a lógica do seu funcionamento” (pg. 17).
Em seguida, traz os aspectos da borda autística e o gozo implicado nela. Para o autista, de acordo com Maleval, “o gozo do vivo não se prende ao significante – de modo que, suas sensações e suas imagens carecem de elementos reguladores (pg. 122). Argumenta sobre o esforço feito para desviar o gozo do corpo, para fazer com que sirva à sua segurança e às suas defesas; “com esse fim, dedica-se à criação de uma borda que separe seu mundo tranqüilizante e controlado do mundo caótico e incompreensível” (pg. 124). Teoriza, também, acerca dos objetos autísticos e constrói amplo argumento sobre a razão de não retirá-los das crianças.
Faz colocações importantes, no intuito de balizar o trabalho clínico: “uma vez que nada está recalcado no sujeito autista, nem interpretações orientadas para a rememorização de sua história, nem aquelas que fazem ressoar o cristal da língua são apropriadas para tratar os seus transtornos” (pg. 12). “Ao passo que um modo de interpretação orientado para o tratamento do Outro é de grande valia para eles” (pg. 13).
O encerramento do livro nos propõe refletir sobre o tratamento para o sujeito autista. Segundo Maleval, há uma tendência das pessoas em olhar a criança com autismo a partir de uma teoria do desenvolvimento, ou uma teoria do simbolismo, ou mesmo por uma idéia de normalidade. “O pior dos erros que um terapeuta de autista possa vir a cometer, a saber: demandar com insistência que tome a posição de enunciação” (pg. 292). E desenvolve: “Está no princípio de sua estrutura subjetiva que ele não seja mortificado pelo significante, de modo que nada teria como ser mais angustiante” (pg. 293).
É com esse tom e esse pedido que o autor deixa suas últimas marcas nos leitores: “Só restam os psicanalistas para captarem que a melhor ajuda que possa ser dada ao sujeito autista não é a dos técnicos do psiquismo, mas a dos educadores ou dos terapeutas de apagar os seus a priori para dar lugar às invenções do Outro” (pg. 359). “Quando o sujeito autista é posto em condições em que suas invenções e as suas ilhas de competência são valorizadas (…), quando a escolha dos seus duplos e dos seus objetos é respeitada, mostra-se possível, (…), não sair do autismo, mas sim do seu mundo imutável e assegurado, o que lhe abre um acesso à vida social” (pg. 378).
Já faz algum tempo que este autor se dedica a escrever sobre os autistas, porém, a sensação que tive ao ler essa produção, foi que ele reuniu todos os pontos essenciais sobre a singularidade do sujeito autista, a fim de tornar o psicanalista melhor orientado ao trabalho na clínica. Como um guia paciente, que disserta em frente a cada monumento histórico, Maleval, cuidadosamente nos conduz em todo percurso dessa viagem instigante. Depois da qual certamente voltamos marcados.