Interessava-me neste espaço questionar se o adjetivo ‘louca’ se acopla à paixão só por força do hábito ou se há verdadeiro merecimento. Há cronicidade nessa atribuição?
Via régia
Se partirmos com Lacan da afirmação de que o corpo é coisa feita para gozar de si mesmo, parece inevitável incluir a paixão como via régia para verificar os efeitos de linguagem sobre o corpo, este corpo que goza. Através da paixão, dos mananciais vivos e profundos da paixão, como dizia Pascal, o corpo se agita e sacode a fadiga do pensamento, troca o ruminar pela eloquência da ação. No caso da indiferença e do tédio, paixões do Um, a troca não se realiza. Na ação da paixão, almeja-se alcançar o coração do ser do outro quando de amor e ódio se trata e o próprio grito quando a angústia, paixão maior, toma conta do corpo.
Este ponto de partida nos indica a dimensão ética das paixões, ou seja, o direito ou a interdição de gozo, a regulação do gozo, o embrolho crônico que lalangue provoca. Este corpo regulado pela lei, esvaziado ou excedido de gozo, mapeado pela linguagem, se distingue do corpo animal da emoção. Paixão no falasser inclui a emoção suplementada com um mais de gozar. Inclui um outro que não é o vizinho senão a alteridade radical.
O mesmo ponto de partida abre a questão do tratamento ético das paixões, as diferentes maneiras que cada época e cada um encontram para enfrentar o real do falasser, o pathos da linguagem, o furo traumático e os diferentes semblantes para tratar o excesso.
O afeto, o encontramos louco
“O afeto, o encontramos deslocado, enlouquecido, invertido, metabolizado, mas nunca recalcado”[1].Trata-se simplesmente de repetir Freud: o afeto nunca é inconsciente, sempre é um significado para o sujeito. Isso mostra, poderíamos dizer, e sempre o faz de determinada maneira, obedecendo a uma retórica própria.
Lacan o disse assim: “O afeto inclui um elemento teatral, uma mostração indubitável… é parente do semblante.”[2] As paixões acolhem as cenas dos afetos loucos.
Essa mostração define a própria vocação das paixões: se mostrar.
A referência mais preciosa que achei em Lacan é de 1971, no seminário De um discurso que não fosse semblante. A dimensão de semblante é sustentada no discurso como laço social, mas pode produzir efeitos que não são da ordem do semblante e sim do real. Ele diz:
Eis a ocasião de esclarecer a diferença que faço há longo tempo entre passagem ao ato e o acting-out: fazer passar o semblante à cena, mostrá-lo à altura da cena, fazer exemplo, eis o que nesta ordem se chama acting-out. Ainda chamamos isso de paixão….[3]
O fantasma brinda a cena no mundo; o sujeito monta a cena dentro da cena para elaborar o gozo a partir do semblante. Um dizer da clínica transmite sua ilustração: alguém ri e logo diz: “Sou ridícula, parece que gosto de dramas. Mas é que sou louca por ele”.
O plural das paixões
Dizíamos que a paixão, a cavalo entre o que se mostra e o que se diz, é retórica, isto é, recorta o mundo e arbitra montagens. No escrito Conversa afiada: A paixão pela fala entre os baianos, Monclar Valverde diz que o que salva a paixão de ser loucura é ela não ser singular, não ser única. As paixões, então, plurais, se regulam, se limitam, se tratam umas às outras, prosperam na arte da polêmica animadas por uma ética de guerra, proliferam na guerra do amor.
A mesma hipótese desenvolve Pascal em seu escrito Sobre as paixões do amor[4]. Determinada pela física do corpo — o homem nasceu para o gozo, diz literalmente Pascal —, a alma entra em comoção. Quanto mais paixões cultive um homem, menos louca será a comoção; quanto menos única, menos desvairada.
Do tratamento possível
Devemos distinguir nossa aproximação ao tema das paixões de todo moralismo. Não é fácil. Desde os tempos da Grécia antiga, a manifestação passional suscita irritação nas mentes serenas e reflexivas. Os moralistas da paixão encontram a verdade do seu discurso finalmente legitimada com a escolástica, que etiqueta a paixão como ‘o’ pecado. “A paixão arrebata, arrebenta, escraviza, extravasa…”[5].
A pastoral condutora de homens vê as paixões como aquilo que priva de razão e até de visão. A paixão é louca, cega, como bem-dito por Nietzsche com seu aforismo: “Só os míopes se apaixonam”. Somente podemos amar o outro porque não o conhecemos, diz Freud. Ou só amamos o que não vemos no outro, o que não sabemos no outro. O saber não é condição necessária da paixão – não é preciso conhecer o valor do objeto para por ele se apaixonar, ensina Freud no seu Leonardo da Vinci.
A paixão irracional avança na contramão do saber. A paixão não obedece à lei; por isso, os S1 se empenham em domesticá-la, em pasteurizá-la, anestesiá-la, educá-la. É o famoso controle das emoções, que faz as delícias do marketing mais atual, a antiga e prestigiosa arte de viver no equilíbrio das paixões. Saber pôr olho de peixe morto frente ao que nos pega de surpresa, não parecer firme demais nas afirmações, saber calar, já “que a mudez canoniza bestas feras”, como dizia o apaixonado poeta Gregório de Mattos. A inteligência emocional é o nome do tratamento contemporâneo da paixão.
A medicina moral na boca de Galeno adverte que a paixão tira o sujeito da saúde. Perturbação do corpo por obra da alma. As paixões da alma, título da obra de Descartes, começa paradoxalmente descrevendo o corpo.
Facilmente tratamos a paixão como imaginária, obedecendo ao nosso código privado de censura, para moralizar. O destino do discurso sobre as paixões é o que a comunidade falante faz delas. Não por acaso, na primeira aula do seminário A angústia, Lacan nos indica que é no caminho da retórica de Aristóteles que poderemos investigar as paixões. As paixões são produto de discurso e só pelo discurso poderão ser tratadas. O sofrimento constitui a escola analítica das paixões. [6]
A curva de Gauss que Lacan propõe para pensar as paixões em cena inclui o nobre, o trágico, o cômico, o bufo. Uma ex- A.E propôs ano atrás que nenhuma paixão se jogue de forma absoluta e em um único lugar. “Tentar encontrar o cômico no trágico, o trágico no cômico, o nobre na comédia, o bufo na tragédia”[7].
Crer no inconsciente impõe um único tratamento possível às paixões: o bem dizer.