Texto de Éric Laurent apresentado no Núcleo de Psicose em 04/10/17.
Como o título nos sugere, neste texto Laurent, ao fazer um percurso interessante atravessando toda obra de Lacan, irá destacar os diversos momentos dos seus ensinamentos sobre a clínica da psicose.
Os anos de 1950 foram marcados por uma profusão de tratamentos psicanalíticos das psicoses, e é quando Lacan intervém apontando para o que vem a ser uma “questão preliminar”: o retorno à Freud e às memórias do presidente Schreber. Lacan nos adverte que é preciso retornar à Freud antes que, ao interpretá-lo, se desvie demasiadamente dele.
Na verdade, Lacan estava preocupado com a grande extensão das indicações da Psicanálise, quer seja para os tratamentos das psicoses, quer seja para o tratamento das crianças. Possivelmente essa grande profusão surgiu como fruto de um movimento de reação aos interditos freudianos para tratamentos nesses casos.
Laurent aponta que em “Uma questão preliminar a todo tratamento…”, Lacan faz uma análise acurada dos fenômenos de língua do sintoma psicótico, e traz uma versão original para o tratamento das psicoses. Ele irá dizer que o que está em jogo é a relação do sujeito com a própria língua. “A forclusão do Nome-do-Pai desnuda a relação com a língua como tal. O horizonte do tratamento possível torna-se, então, o estabelecimento de uma significação nova após a invasão de um gozo inominável, de um mecanismo pulsional que invade o corpo do sujeito psicótico fora do funcionamento das zonas erógenas. A “ausência de interpretação possível em nome do pai” acompanha-se normalmente do desvelamento da maneira segundo a qual a língua do sujeito psicótico é habitada pelo esforço em nomear o gozo inominável. A “língua fundamental”, como se exprime Schreber, desvela um mecanismo comum a toda psicose: o estabelecimento de um uso particular da língua para circunscrever o gozo.”
Lacan, tomando de Jakobson os conceitos de metáfora e metonímia, e a relação entre código e mensagem, os transforma, aproximando-os das definições freudianas de deslocamento e condensação. Laurent lembra, como foi estabelecido por Jacques-Alain Miller, que foi ao longo de seu Seminário sobre as psicoses que Lacan apreendeu o alcance da operação metáfora/metonímia para a psicanálise.
A partir daí foi que Lacan pôde, partindo da metáfora, estabelecer o matema do lugar do pai enquanto simbólico. Vindo de fora do sistema da língua, o Nome-do-Pai vem assegurar os efeitos de sentido, garantindo o efeito fálico e estabilizando o sentido sexual. Quando o pai “deixa de ser o fiador”, diz Laurent, a significação fálica desaparece e “o sujeito é invadido por coisas inomináveis”, como ocorre no caso de Schereber, em que ele tem que se deparar com fenômenos que o invadem, com ondas de gozo não localizadas, e um Deus que quer efeminá-lo. Na ausência do pai há uma mistura de códigos e mensagens. A língua começa a ser invadida por usos novos. Schreber recebe, assim, um certo número de informação sobre os usos novos das palavras, das mensagens sobre o código novo. Por outro lado, ele recebe códigos de mensagem, empregos, frases-mensagens que se impõem a ele, que infectam, que parasitam as funções standard da língua. Essas relações código/mensagem introduzem, incessantemente, usos novos. Lacan esclarece essa dupla vertente pela análise acurada das alucinações de Schreber. Laurent destaca que isso não havia sido feito por Freud, tampouco pelos psicanalistas que vieram depois dele.
Nesse momento, o tratamento das psicoses seguia na direção de encontrar uma estabilização da metáfora delirante sem o recurso do Nome-do-pai. É o que Laurent coloca aqui como “recorrer a uma espécie de neometáfora”, onde fosse possível se chegar a uma estabilização de significante/significado através de um Nome-do-pai “não standard”, retomando a expressão de Miller.
Laurent, então, justifica a escolha do título do texto, colocando no plural “Os tratamentos…”, para destacar esse percurso em Lacan do Nome-do-pai singular, avançando para a sua pluralização e, em seguida, chegar ao que Miller nomeou de “segunda Metáfora Paterna”. Agora, trata-se do Outro, da língua, que se encarrega da garantia ou da nomeação do gozo.
Essa perspectiva dá acesso a todas as espécies de tratamentos possíveis das perturbações da linguagem. Trata-se de encontrar ou definir em diferentes abordagens a solução encontrada para a falha da significação fálica.
Laurent destaca ainda que, os tratamentos possíveis das psicoses visaram sempre ajudar o sujeito a nomear esse inominável do gozo, e que é importante estar atento ao fato de que isso não equivale a ajudar o sujeito a delirar. Não é disso que se trata. Trata-se de escolher no trabalho do delírio o que conduz o paciente a uma nomeação possível. Assim o analista ajuda o sujeito psicótico no trabalho de tradução daquilo que acontece com ele e que, para ele, está fora da significação.
Nas palavras de Lacan, trata-se de ajudar o sujeito a “fazer-se um nome”. Laurent assinala que no início fez-se uma leitura um pouco mecânica disso, que consistia em acompanhar o esforço do sujeito delirante em direção a uma identidade de gozo tal como Schreber: “a mulher de Deus”. O problema era que o uso mecânico desse processo, isolando um uso neológico de um nome que o sujeito se dava e fixando-o em um significante-mestre, acabava fixando o sujeito, muitas vezes, em um ideal. O que Laurent vem apontar é que é preciso sair dessa categoria enquanto ideal universal, ou seja,“fazer-se um nome” ideal cada vez mais individualizado, e que também não há outra identificação a não ser o processo de busca do nome que se fixa “um certo tempo”.
Desta forma, Laurent coloca que, “quando Lacan diz: “Joyce, o sintoma”, isso é dizer que, como sinthome, Joyce é aquele que consegue identificar-se com seu esforço de produção de uma língua nova, com Finnegans Wake, a operação joyciana sobre a língua é extremamente estranha.” Ela não tem mais nada a ver com a verdade do inconsciente. Para ler Finnegans Wake, pouco importa saber qual é a vida de Joyce e quais são as experiências infantis que ele atravessou. Não é a partir daí que se avança. Como observava Jacques-Alain Miller, a sublimação joyciana é inteiramente centrada não sobre a verdade, mas sobre o saber.
E então surge a pergunta: “Como Joyce se serviu de tudo isso para fabricar sua própria língua a partir do saber?” Joyce não é identificável sob a rubrica do “Eu sou aquele que…”. Trata-se de uma identificação com procedimento joyciano de transformação da língua.
Eis, então, uma sutil diferença. Ao “fazer-se um nome” não se trata de alojar-se apenas sob um nome identificável no registro do ideal, mas sim decidir-se por esse trabalho de tradução da língua.
Laurent coloca ainda que precisamos estar atentos para o fato de que esse trabalho de tradução, às vezes, pode implicar em “curtos-circuitos”, já que um dos modos fundamentais de nomeação é a passagem ao ato. Segundo ele, existem certos cuidados e “medidas de precaução” que quem acompanha o caso deve sempre estar atento. Em determinadas situações, a ajuda de tratamento medicamentoso, ou até mesmo de uma internação, são recursos que não devem ser descartados, já que existem coisas ainda muito difíceis de serem traduzidas para um sujeito.
Para concluir, todo o desenvolvimento dado por Lacan no que diz respeito às psicoses, nos permite repensar hoje o seu tratamento. O paradigma joyciano ampliou o campo da sublimação psicanalítica trazendo novas perspectivas aos tratamentos possíveis das psicoses.