No último Boletim preparatório da 23ª Jornada da EBP-Ba, (O)caso da intimidade: inquietante opacidade do Ser, trazemos uma entrevista com Valéria Ferranti (Membro EBP/AMP), coordenadora do Núcleo Ciranda/Clin-a-SP , o qual faz parte da Nova Rede CEREDA do Brasil. Valeria responde a perguntas sobre um tema que nos é bastante caro na clínica: a adolescência na contemporaneidade, como os adolescentes situam-se nessa época da transparência, da exibição dos corpos e dos selfies, o que visam ao postarem cenas íntimas nas mídias, fato cada vez mais comum, e quais os efeitos desse fenômeno.
Miller, em seu texto Em direção a adolescência (2015)[1], ao afirmar que os jovens modernos padecem mais da incidência do mundo virtual do que aqueles de gerações passadas, destaca que se trata do resultado do enfraquecimento do Nome-do-Pai, que foi intimidado pelos dispositivos de comunicação. Porém, advertidos de que o discurso da ciência não recuará e que as novas gerações estarão cada vez mais afrontadas com esses objetos, nos interessa fazer uma leitura sobre uso os adolescentes fazem das mídias sociais no que se refere ao laço.
Persiana Indiscreta – A experiência do estranho, tal como proposto por Freud em Umheimliche, diz respeito a algo também bastante familiar e íntimo. Como isso se presentifica na clínica com adolescentes hoje? Algo se modificou frente à nova lógica virtual, de superexposição, tempo do pornô, dos nudes, dos likes e dos stories?
A moral vitoriana que orientava os modos de relação familiar permitiu que Freud isolasse a intimidade do casal. Os filhos excluídos do leito parental, a porta fechada, enfim, uma cena da qual as crianças estavam excluídas configurava-se em um segredo. A curiosidade em saber o que se passava na intimidade da sexualidade abria caminho para as teorias sexuais infantis.
Hoje, a porta do quarto está aberta, a intimidade vinculada ao sexual não se configura mais como um segredo a ser desvelado. A sexualidade não está mais no terreno do íntimo e do segredo, e a escolha de objeto está posta a toda experimentação. Mudanças da época que implicam a experiência adolescente, pois, grosso modo, poderíamos dizer que as teorias sexuais infantis revisitadas quando da eclosão da puberdade – que trazem a estranheza de um corpo que se manifesta sem necessariamente a vontade de seu “dono” – davam algumas balizas no encontro com o Outro corpo.
Hoje, como nos diz Miller, trata-se da urgência de satisfação de um gozo êxtimo ao corpo. Íntimo e estranho, com menos enquadres simbólicos e imaginários e que coloca o jovem cara a cara com a dimensão real do sexo.
Persiana Indiscreta – O tema da XXIII Jornada da EBP-BA, “(O)Caso da intimidade: inquietante opacidade do ser”, aponta para uma discussão acerca da dimensão do olhar absoluto na vida contemporânea, denunciando um imperativo de transparência. Como podemos pensar os fenômenos que se apresentam na adolescência hoje, frente a um Outro mais silencioso que comparece como quem tudo vê, panóptico que representa um empuxo ao voyeurismo?
Há na pergunta uma articulação entre o olhar absoluto e o imperativo da transparência ou “você deve mostrar tudo”. Há um pequeno filme sendo veiculado nas redes de uma garota que acorda, se maquia, volta pra cama como se tivesse acabado de acordar, tira uma selfie e posta nas redes. Nada mais fake, que responde ao imperativo de mostrar, mas sem nenhuma transparência. Uma montagem que mostra o que se quer ver, que responde ao Outro.
Miller, em seu seminário Silet, afirma que a imagem do corpo próprio pode ter função de significante e o sujeito pode se fazer representar por sua imagem diante do significante do Outro. Aqui a imagem tem valor significante respondendo a um Che vuoi?
Em seu seminário livro 11 (Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise), Lacan insiste na necessidade de distinguirmos a função do olho e do olhar. O que está em jogo na experiência do adolescente e das redes onde a mostração responde a um imperativo?
Também com Lacan aprendemos que na experiência do olhar a castração joga sua partida. Então, tenderia a considerar que, se a resposta pela imagem vem na via do corpo próprio, estamos no terreno do significante, em uma articulação direta com o Outro, e a castração está no jogo. Isso evidentemente não exclui a possibilidade da experiência se dar pela via do olho, sem que o circuito pulsional esteja na partida, e aqui o jovem se objetaliza.
Persiana Indiscreta – Podemos dizer que há novos modos de laço social sendo empreendidos pelos jovens atuais, na grande rede de computadores interconectados? De que Outro falamos ao considerarmos as mudanças nas formas de comunicação que se tornam, a cada momento, mais virtuais?
Em uma homenagem póstuma a Rosine Lefort, Miller nos fala do “gozo autista nativo do ser” e que, apesar da perda inerente ao troumatisme, resta um tanto desse gozo tão íntimo. A inexistência do Outro em nossa época faz ressaltar esse modo de gozo solitário, autista. No entanto, um aspecto que se faz presente nas redes e que me chama a atenção no discurso dos jovens é que sempre há um outro à espera, sempre há alguém para responder, para jogar on-line, enfim, há sempre uma oferta e não é preciso o encontro dos corpos para que algum tipo de laço, mesmo que efêmero, se faça.
Nesse esconde-esconde virtual – lembrando que para jogar é preciso de pelo menos mais um -, como afirma G. Wajcman, o sujeito permanece fora do olhar do outro em um espaço de exclusão interna, onde há a possibilidade de se esconder. Mostrar e esconder, sem pôr em jogo o olhar, e o dar-se a ver, sem pôr em jogo a dimensão pulsional que convoca a castração, seria uma estratégia para manter-se no circuito da demanda sem aceder a nenhuma pergunta sobre o desejo, ou seja, gozar sozinho, às vezes convidando o outro, mas tendo sempre a possibilidade de retirar-se se a convocação para a inclusão do Outro for demasiada.
Aguardo os avanços que a XXIII Jornada da EBP-Bahia certamente trará para essas questões.