Através do relato de um diário, Simone de Beauvoir, em seu livro A mulher desiludida[1], traz a história de uma mulher casada há muitos anos com um homem com o qual partilhava identificações e valores em uma relação de carinho, companheirismo e cuidado mútuos. Assim ela percebia o casal.
Em um dado momento, a intimidade da personagem é entregue, por ela mesma, ao público, que, nesse caso, é representado pelos seus amigos. Com a rapidez de um raio, algo do mais íntimo dela passa a estar em exposição: o sofrimento de ser traída; a realidade da existência de outra mulher na vida de seu marido, isto é, a presença da Outra mulher na cena conjugal.
Um acontecimento dessa ordem pode adquirir dimensões trágicas como o foi para Medeia, que levou ao extremo a resposta para seu desespero.
A personagem de Beauvoir tomou outro rumo. Apostou na invenção de um diário, o que a levou à escrita, registrando, portanto, o dia a dia de seu drama, enquanto acossada por aquele turbilhão que experimentava sua subjetividade – em seu corpo, em seus afetos, em sua mente. Este foi o uso que ela fez de sua intimidade.
O aspecto singular de tal configuração conjugal adquiriu contornos insuportáveis quando ela constatou a intenção e imposição do marido em compartilhar-se entre as duas mulheres de forma igualitária, vale dizer: o que entregava a uma, entregava à outra. Ou seja, tantas noites com uma, tantas com a outra. Isso vale também para as férias e finais de semana.
É plausível pensar que essa forma de intimidade conjugal, estranha aos padrões culturais à época, tomou maiores dimensões quando a situação aos poucos ganhou alcance público, pois seu marido era homem de projeção social e profissional.
A aceitação por ela da proposta denota o núcleo de gozo que habita a intimidade. Sua certeza vacilara acerca do lugar que desempenhava no desejo daquele homem. Ora ela se via como objeto desejado, ora como objeto dejeto. Deste lugar, ela indagaria sobre sua própria identidade: que sou para esse homem?
Em se tratando de um drama feminino, esse acontecimento pode ser considerado banal. No entanto, à luz de nosso tema em estudo – o conceito lacaniano de extimidade –, a sutileza de Beauvoir consiste justamente em adentrar nas entranhas femininas para aí detectar suas contradições, seus segredos, mistérios e mitos. Isso nos ajuda a pensar.
Nada de excepcional para uma consagrada autora que se dedicou ao estudo da mulher em um sem-número de aspectos. Em seus romances, ela gentilmente nos oferece o desvelamento da alma feminina.
O conceito de extimidade de Lacan, estudado por J.-A. Miller[2], é o que nos permite situar a relação intimidade/exposição, explícito/obscuro. Pode-se perceber então o íntimo como o mais exterior, o que aparece ao ser como estranheza, o heimlich freudiano, nas ocasiões em que o sujeito e o objeto ganham o estatuto de êxtimos. É quando o ser é confrontado com a sua essência de faltante, do vazio, do buraco da estrutura. Como esclarece Miller, o inconsciente tem a estrutura de extimidade, bem como a linguagem e o Outro.
A delicadeza de Beauvoir está presente ao abordar o drama da mulher através de sua personagem, que, ao minimizar o uso dos recursos da histeria, trata sua devastação de maneira incomum aos relatos do gênero. Não com a propalada “honradez” ou “dignidade”, como diriam alguns, mas tolerando sua estranheza, sua inquietude, a perturbação em seus afetos, ofertando tudo à letra, que então se tornaria letra de gozo.
O diário nos revela a forma avassaladora em que se apresentam os efeitos da queda de suas certezas, os quais se estendem por toda a vida passada e a pouca visualização do futuro. Seu relato representa também um apelo ao Outro na forma de escrita. Haverá, quem sabe, alguém que poderá evocar as cartas de Joyce a Nora para destacar o valor da escrita tal como Beauvoir o intuiu.
O que se pode configurar como um mais-além para essa mulher é o futuro, que a escritora só vai ofertar ao leitor nas últimas palavras do livro, como o vislumbre de uma nova porta que se abre.
Para Miller, a intimidade é relacionada à extimidade, sendo mesmo uma fratura constitutiva da extimidade. O êxtimo é onde se espera reconhecer como o mais íntimo: “É mais interior que o meu mais íntimo”, diz Santo Agostinho, referido por Miller. O autor conclui: “o êxtimo é o que é mais próximo, mais interior, ao mesmo tempo exterior”[3].
François Regnault, em seu livro Em torno do vazio[4], propõe que a arte literária, entre outras, é uma forma de o sujeito dar conta do furo na estrutura simbólica que condiciona o vazio. Trata-se do furo, falando em termos topológicos, cujo acesso é impossível, verificando-se apenas o bordejamento que é realizado pelo significante. Sendo da ordem da sublimação da pulsão, representa um manejo de desejo e gozo.
Intimidade, extimidade, interior, exterior são termos, portanto, que circulam também quando o falasser se confronta com as contingências da vida.