O último livro de Clotilde Leguil[1], “Je”, Une traversée des identités (2018), aborda, ao nosso ver, a questão do íntimo e do êxtimo na contemporaneidade sob um novo ângulo, a partir da distinção entre o “Je” e o “moi”[2].
Partindo da observação de que no século XXI a questão da identidade, seja de ordem sexual, política, religiosa ou cultural, tem ocupado um espaço importante nos discursos sociais, Clotilde Leguil nota que quanto mais falamos de identidade, menos falamos do «Je», do sujeito do inconsciente. Assim, o objetivo principal do seu livro é defender, nesta era da globalização, a relação do sujeito à sua existência, a partir do «Je», e não a partir da relação imaginária à imagem de si mesmo, reforçada por um narcisismo de massa. Segundo ela, a época atual tende a apagar, a esmagar, a foracluir o «Je», e isso se deve a dois poderosos discursos do mestre na atualidade: o discurso do «nós», da coletividade, e o discurso científico.
De acordo com a autora, o discurso do «nós» considera que a identidade de um ser é inicialmente uma identidade coletiva. Ele seria, assim, uma resposta à angústia provocada pela uniformização do mundo, dos costumes, da própria existência. Já o discurso científico, que é o discurso da avaliação, da quantificação, considera que a questão da identidade subjetiva deve ser tratada em termos puramente científicos, matemáticos, como o que propõe as neurociências. Diante disto, Clotilde Leguil se questiona sobre o lugar da dimensão subjetiva nos dias atuais, já que de certa maneira esses dois discursos dificultam o que Lacan considerava uma das condições da experiência analítica, ou seja, ultrapassar o eixo imaginário para alcançar o registro do simbólico pelo ato da fala.
A sua hipótese é que o «Je» tenta se expressar em um lugar de conjunção das redes sociais com o narcisismo de massa. No entanto, esse lugar é, ao mesmo tempo, um impasse para o «Je», pois o narcisismo indica uma relação com o «moi» e não com o «Je». A esse propósito, a autora ressalta que, para Lacan, o narcisismo não é o contrário do «Je». Para ele, a relação à imagem narcísica é apenas um primeiro momento da relação consigo e com o Outro e que o narcisismo deve ser ultrapassado, especialmente na experiência de uma análise, a fim de tocar a dimensão simbólica, a qual implica o «Je» e o sujeito do inconsciente.
Dito isto, de acordo com a psicanalista, no narcisismo de massa, os indivíduos, guiados pela exigência pulsional de compartilhar o mais íntimo de si mesmos, exibem suas vidas, seus sucessos, seus fracassos, até mesmo suas angústias e tentam, em vão, afirmar suas singularidades. Essa massificação da relação narcísica dos indivíduos às suas existências nos confronta ao que Clotilde Leguil chama de estádio do espelho eletrônico. Se, por um lado, este, em razão do fascínio proporcionado pela jubilação da própria imagem nas telas, dá a impressão aos sujeitos de existirem enquanto «Je», de se distinguirem num mundo padronizado, por outro lado, ele indica o perigo disso na medida em que, diante de uma tela, o Outro ao qual nos confrontamos é anônimo, o que pode angustiar alguns sujeitos.
Clotilde Leguil termina seu livro sugerindo que, através da experiência da análise, ainda podemos apostar na dimensão do «Je» no século XXI e reinventá-lo, evitando que ele seja absorvido pelo narcisismo de massa. Ao seu ver, numa análise, ao contrário das redes sociais, onde o que tem valor é o que se compartilha, damos valor ao que não se compartilha – sintomas, fantasmas, desejos –, e não é porque não os compartilhamos que eles não existem. Apostar no «Je», afirma Leguil, possibilita uma outra via que a do narcisismo: é aceitar entrar no campo da linguagem e não saturar a dimensão do inconsciente; é atravessar as identidades, conclui a psicanalista.