O convidado da 23º Jornada da EBP-BA, Gustavo Dessal, fala sobre (O)caso da intimidade
Na versão pós-moderna do panóptico de Bentham, a noção e o sentimento de intimidade se desfazem. O mundo líquido deu um passo à frente e ficou sem gravidade. É o mundo do Big Data. Aos poucos, todos e cada um dos segredos de nossa existência vão sendo registrados no formato de sinais digitais. Não se trata de uma perspectiva futurista ou distópica. Atualmente, a China é o país mais avançado em matéria de vigilância. Através de sofisticados sistemas de reconhecimento facial, cada cidadão recebe uma ficha onde é consignado absolutamente tudo sobre sua vida. Isso dá a ele o que é denominado “ficha social”. Dependendo dessa ficha, existem diferentes possibilidades de acesso ou negação a determinados direitos, como educação, saúde, inclusive a possibilidade de utilizar meios de transporte. Não há como escapar disso. O trânsito do íntimo para o público e sua direção contrária é atualmente fluído, não se detém nunca. Essa impossibilidade do “fora” atinge níveis sublimes: quando alguém morre, não há como desativar sua conta no Facebook. Nem mortos podemos sair do mundo sem gravidade.
“O ocaso da intimidade” é um título magnífico. Uma oportunidade para debater o que é o “íntimo” na época contemporânea. Não basta mais responder que pelo menos o inconsciente existe e que ali ninguém – nem o próprio sujeito – tem acesso. Nos tempos freudianos, pelo menos atrás dessa porta você poderia encontrar amparo. Atualmente, já não é tão certo. Será que nos atreveremos a interrogar o próprio estatuto do inconsciente? Como adentrar nos restos da digitalização globalizada da existência? Devemos assumir que esses restos serão o produto inevitável do quociente algorítmico do sujeito. A partir desse real é como podemos vislumbrar a sobrevivência do sintoma e, por consequência, do íntimo.
A psicanálise tem o dever ético de custodiar a intimidade divina do parlêtre (falasser). A técnica não cessará de assediá-la por todos os meios, cada vez mais refinados. Quando essa intimidade encontra a conjuntura que a torna doente, o cientificismo põe todo seu empenho em conduzi-la a dispositivos de avaliação, medição e reparação. Esse é o terreno onde o discurso analítico joga a partida que já começou.