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O que não se vê da janela

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O que não se vê da janela

xxiiijornada 21 de agosto de 2018 in Boletim Persiana Indiscreta 0

Marcelo Veras – AME. Membro EBP/AMP

Com Lacan, aprendemos que a imagem no espelho tem uma função de localização do gozo enigmático que escapa à tentativa de conversão d’Alíngua em língua do Outro. A imagem de si é uma organização desse gozo errático, revelando os buracos e objetos do sistema pulsional. Nas psicoses, tudo isso pode ser colocado em questão. Como o esquizofrênico pode dar um tratamento ao enigma do gozo se ele possui, como disse Lacan, o objeto da pulsão no bolso? Nesse caso, a imagem se desorganiza em peças avulsas e revela, para além de uma pacificação, sua inquietante estranheza.

Em seu curso Silet, Miller[1] intitulou uma das aulas “Lacan versus Merleau-Ponty”. Miller demonstra que o ponto de separação entre os dois pensadores se dá no momento em que o último exclui do olhar a estranheza, Unheimlichkeit, ponto a partir do qual Lacan justamente introduz a pulsão escópica para, em seguida, reformular a pulsão em geral.

Essa afirmação em nada impede que o encontro com Merleau-Ponty tenha sido de grande importância para Lacan. Desse encontro, extraímos alguns pontos que repercutem diretamente na teoria das psicoses. Pensar a questão da intimidade nas psicoses implica distinguir os fenômenos que buscam ou sofrem uma tradução ao passar pelo campo do Outro e os fenômenos que são opacos, intransponíveis para a trama dos sentidos. É possível extrair uma importante diferenciação clínica a partir dessa constatação. Essa proposta é levantada por Pierre Naveau a partir da controvérsia entre Lacan e Merleau-Ponty sobre a natureza das alucinações[2]. Lacan afirma que a alucinação é uma percepção sem objeto. Merleau-Ponty afirma que a alucinação não é uma percepção: “(…) a alucinação não é um conteúdo sensorial, só nos resta considerá-la como um julgamento, como uma interpretação ou como uma crença”[3].

Esse debate implica diretamente no modo como se estrutura a realidade na obra dos dois autores. Seguindo o ponto de vista desse último, a alucinação é um fenômeno desconectado do Outro, já que nenhum perceptum seria capturado pelo percipiens. Lacan, por sua vez, parte do princípio de que há percepção na alucinação. Ele acrescenta: a diversidade dos registros das sensações visuais, auditivas, olfativas etc., não ameaça a unidade do percipiens se for observada a condição de que o percipiens se mantenha à altura da realidade[4].

Pode, a princípio, causar estranheza que nessa passagem Lacan, que se dedicou em diversos momentos de seu ensino a desconstruir a realidade, tenha feito tal afirmação. Aqui, ao convocar a realidade, parece-nos que ele busca sustentar a existência de um sujeito à altura da realidade. Ou seja, convocar o sujeito, ativamente, a dar testemunho de que o problema não é que o perceptum não exista, tal como afirmava Merleau-Ponty – o que não implica que ele faça parte da realidade –, mas que o perceptum é da ordem do real.

Seu comentário aponta uma orientação clínica que busca manter o foco na realidade, mesmo quando se trata do fenômeno alucinatório. Ao negar a percepção na alucinação, Merleau-Ponty nega a possibilidade de o percipiens extrair uma lógica subjetiva na construção da alucinação. Ela passa a ser definida como um núcleo de incomunicabilidade que faz da alucinação um fenômeno externo ao laço social. Assim, estar à altura da realidade implica suportá-la ali mesmo, onde o real faz furo. A clínica se pauta nas estratégias de subversão do real que possibilitarão ao sujeito sustentar-se em um mundo habitável, o que é bem diferente de atribuir à psicose um erro de julgamento.

Bernard Baas, contudo, afirma que há muito mais semelhanças do que discórdias entre os dois pensadores. É ao pensarmos a evolução de das Ding a objeto a que percebemos que a obra de Merleau-Ponty se aproxima da teoria lacaniana. Mais especificamente na comparação que pode ser feita entre a Coisa, tal como ela é concebida por Lacan, e a carne (la chair), conceito muito específico na obra de Merleau-Ponty. Em sua obra, a carne é o fundo de natureza inumana sobre o qual o humano se instala.

O movimento do ensino de Lacan, que vai do Seminário VII até o Seminário XI, não deixa de guardar uma similaridade. Ele traça precisamente a passagem da Coisa ao objeto a onde se pode perceber a extração do objeto como condição de certa humanidade. Ele pode ser lido sob inspiração da obra do autor da Fenomenologia da percepção, sobre a qual Baas faz o seguinte comentário:

Em Visível e invisível trata-se, portanto, de pensar o corpo, não como corpo biológico, mas como “carne”, quer dizer, como o que é ontologicamente anterior à distinção entre objeto sensível e sujeito sensitivo. E, mais precisamente – já que é esta a referência privilegiada, mas não exclusiva, de Merleau-Ponty – entre o visível e o vidente. Essa “coisa” que Merleau-Ponty nomeia “carne” é ao mesmo tempo “o que precede e o que preside” a distinção ou a separação entre o visível e o vidente[5].

Estabelece-se uma topologia do quiasma[6] que, para Baas, é a mesma característica principal do objeto a: a reversibilidade. É igualmente como coisa reversível que se apoia a ideia de corpo presente na obra de Merleau-Ponty.

O corpo, por um lado, faz parte do mundo, ou seja, das coisas que podem ser sentidas. Sentimos nosso corpo a tal ponto que podemos nos referir a ele na terceira pessoa. Por outro lado, é com esse mesmo corpo que sentimos o que pode ser sentido, inclusive nosso corpo. Nesse sentido, ele é coisa sensível. Baas propõe o seguinte esquema[7]:

O esquema serve a Baas para demonstrar que a linha mediana, representando o corpo, tem uma afinidade com o objeto a lacaniano. Ambos possuem o critério de reversibilidade. É no corpo que se produz a reversão daquilo que é coisa que sente para coisa que é sentida. O hibridismo dessa condição traz como consequência a impossibilidade de ser puramente um ser que vê.

É impossível se obter uma visão do mundo, pois para que essa visão seja possível, temos que eliminar daquele que vê sua própria condição de ser coisa que também é vista. No esquema L, a mesma condição de reversibilidade, que faz deslizar do mais íntimo ao mais externo, é demonstrada pela fita de Moebius, assegurando, desse modo, que a percepção da realidade inclui o próprio sujeito pensante. Ou seja, não há interioridade do ser que não seja igualmente algo “fora de si”.

O corpo (…) agrupa as coisas percebidas e, com elas, entre elas, o corpo que percebe. E é por isso que não podemos aqui nos contentar com uma topologia ingênua que faz do corpo um simples envelope da alma, como sugere a ideia do olho como uma “janela da alma”[8].

 

 


[1] Miller, J.-A., Silet – Os paradoxos da pulsão de Freud a Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 290. (Campo Freudiano no Brasil).
[2] Naveau, P., Les psychoses et le lien social. Paris: Anthropos, 2005, p. 36. (Psychanalyse et pratiques sociales)
[3] Merleau-Ponty, M., Phénoménologie de la perception. Paris: Éditions Gallimard, 1945, p. 386.
[4] Lacan, J., D’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose. In: ___. Écrits. Paris: Ed. du Seuil, 1966, p. 532.
[5] Baas, B. Notre étoffe (Lacan et Merleau-Ponty). La cause freudienne – revue de psychanalyse, v.29. 1995, p. 48.
[6] Idem, p. 49.
[7] Idem, p. 49.
[8] Idem, p. 50.
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A exposição da intimidade, uma loucura contemporânea Editorial Boletim Persiana Indiscreta #07

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