Daydreaming é o nome da canção do Radiohead que ganhou uma versão cinematográfica pelas mãos do diretor Paul Thomas Anderson. No clipe, acompanhamos um homem caminhando e abrindo portas: um corredor de hospital, uma sala de jantar vazia, uma loja de bugigangas, um quarto de criança… São cenários familiares onde o elemento estranho entra e sai dos espaços como quem perfaz apenas um único e contínuo caminho. Não se trata de “entrar e sair” num espaço “dentro e fora”; ele simplesmente “atravessa” sem que sua presença seja notada.
O homem ocupa um espaço em cada lugar por onde passa, porém é um espaço sem extensão. Um estranho que não chega sequer a ser notado em sua estrangeiridade. Assim como em “A carta roubada”, a sua presença é tal que ela não está em parte alguma – é um estado de “nulubiedade” e, justamente por isso, nos conduz em um estado onírico, caminhando e dormindo, sob o conforto do recalque.
A intrusão do significante do Outro na cadeia do discurso de um sujeito é tal qual Tom Yorke no clipe de Daydreaming – percorre invisível nos desfiladeiros da fala justamente por não poder ser lido. A extimidade do significante do Outro no discurso do sujeito não causa estranhamento, desde que esteja velada. Este é o caso quando a mensagem do falante, mesmo nas mais candentes confissões íntimas, é a mensagem do Outro sob a forma invertida. Ler a qualidade êxtima da mensagem é próprio da análise e condição de possibilidade de uma perda na consistência do Eu que, pouco a pouco, torna-se mais poroso, menos certo do que lhe é familiar e estranho. A presença do Outro onde antes ela estava encoberta é o próprio da angústia, e a neurose testemunha essa peculiaridade quando mostra o quanto uma posição desejante depende desse desvelamento. Para continuarmos dormindo, é preciso que a estrangeiridade do objeto a esteja constantemente coberta pela aura de nossas ficções e fantasias. O clipe termina com o homem continuando a dormir, dessa vez com os olhos fechados. A paixão da ignorância no desejo de dormir – “Dreamers, they never learn”
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É a partir da relação do sujeito com o significante e com o outro, com os diferentes estágios da alteridade, o outro imaginário e o Outro simbólico, que poderemos articular esta intrusão, esta progressiva ocupação psicológica do significante que se chama a psicose.[1]
Essa é um bela definição de psicose que se encontra no Seminário 3 e chama a atenção pelo acento conferido por Lacan à ocupação intrusiva dos significantes na cadeia discursiva do sujeito.
Nesse mesmo seminário, Lacan comenta detalhadamente o caso de uma mulher que também caminhava dormindo, até que se chocou contra um pedaço de real: “Porca!”. Quem diz aí? É interessante constatar como Lacan realiza uma importante distinção neste caso de alucinação verbal. Aqui não se trata de uma mensagem do Outro sob a forma invertida, porque esse outro não passa de uma imagem especular – a alteridade neste caso está condensada na figura do homem com quem cruza no corredor. A experiência psicótica de alucinação verbal é a posta em ato no real dessa estrutura linguareira onde o sujeito é sobretudo um sujeito falado, atropelado por palavras impostas. Na alucinação, o significante “se impõe por si ao sujeito” e o faz através da voz. O estranho da voz alucinatória é experienciado como intrusão. A externalidade do significante vindo do real rompe a cadeia associativa e por extensão a própria realidade. A alucinação é vivida em toda a sua estrangeiridade, o que por extensão conflui muitas vezes para uma despersonalização ou desrealização. Aqui o sujeito perde a própria experiência de intimidade com sua própria imagem e por extensão com o semelhante. O limite que permite delinear os contornos de um Eu é transpassado de modo abrupto pela intrusão daquilo que Lacan, em “Uma questão preliminar para todo tratamento da psicose”, indica como o objeto indizível: “É assim que o discurso vem a realizar sua intenção de rejeição na alucinação. No lugar em que o objeto indizível é rechaçado no real, uma palavra faz-se ouvir, porque, vinda no lugar daquilo que não tem nome, ela não pode acompanhar a intenção do sujeito.”[2]
“Porca” é um significante intrusivo, não precisamente por conta do sentido que a palavra carrega, mas sim por vir no lugar daquilo que não tem nome e que concerne o sujeito no mais íntimo do ser.
O interessante aqui é perceber como o relato da paciente de Lacan num contexto de apresentação de pacientes é também uma maneira de conferir um tratamento discursivo à experiência de intrusão. Lacan comenta que foi apenas com certo manejo que ela diz sobre a alucinação “Porca”. Dar um testemunho consentido sobre “a desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida” é uma chance que o sujeito tem de poder restituir uma enunciação sobre o seu indizível. Não é exatamente nesse ponto que a apresentação de pacientes e o relato de passe encontram um ponto em comum?
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Jean-Luc Nancy não estava internado em um hospital psiquiátrico e tampouco estava caminhando dormindo quando escreve seu testemunho sobre sua experiência de intrusão. Refiro-me ao seu pequeno livro O intruso, um relato sobre o indizível de ter um coração transplantado. A ocasião médica foi a oportunidade de Nancy elaborar algo de sua experiência pessoal posta a serviço de pensar a natureza daquilo que por ser intrusivo resiste a perder a sua estrangeiridade, resiste a se confundir com o familiar. Vale a pena acompanhar as palavras que abrem o seu livro:
O intruso se introduz à força, de surpresa ou por astúcia, em todo caso sem direito, sem ter sido de saída admitido. É preciso que haja o intruso no estrangeiro, sem o que ele perde sua estrangeiridade. Se ele já possui o direito de entrada e de estada, é esperado e recebido sem que nada dele fique fora de espera nem fora de acolhimento, ele não é mais o intruso, também não é mais, tampouco, o estrangeiro. Também não é logicamente aceitável nem eticamente admissível excluir toda intrusão na vinda do estrangeiro. Uma vez que está aí, se ele permanece estrangeiro, durante todo o tempo em que o permanece, em vez de simplesmente “naturalizar-se”, sua vinda não cessa: ele continua vindo, e esta não deixa de ser por algum lado uma intrusão: isto é, de ser sem direito e sem familiaridade, sem hábito e, ao contrário, de ser um desarranjo, uma perturbação na intimidade.[3]
A potência de sua escrita, além de residir no caráter poético, também repousa em sua posição: “acolher estrangeiro quer dizer também sua intrusão”. Aqui não encontramos nem um velamento da intrusão, nem uma intrusão de tal modo que não possa ser reabsorvida pelo sujeito. Parece-me uma afirmativa que encontra eco na proposição de uma análise onde o núcleo de gozo mais rechaçado, mais escondido, mais indizível possa encontrar um lugar na vida de um falante. Não deixa de ser uma aposta no bem-dizer do indizível. O relato de Nancy é um testemunho de alguém que pôde dar uma volta a mais em torno da experiência da perda de uma identidade e que assim pôde dar um lugar àquilo que, ao ser o mais interior, é também o mais êxtimo.
A vinda do intruso não cessa de não se escrever. Há uma vida que não cessa de não encontrar um lugar na vida corrente, e é por isso mesmo que uma análise levada a seu termo é uma chance de poder alojar, com a invenção que é possível a cada um, aquilo que não cabe em lugar algum. Não deixa de ser, como nas palavras de Nancy, uma perturbação da intimidade.